9 de abril de 2018

Antes Tarde do Que Nunca - Grandes Álbuns

Hounds Of Love
Kate Bush



Quando lançou Hounds Of Love em 1985, a britânica Kate Bush tinha vinte apenas oito anos de idade, mas já tinha se firmado com um forte nome dentro do cenário musical na Inglaterra com quatro álbuns já lançados. Entretanto, a cantora ainda parecia estar meio perdida artisticamente, principalmente devido a pressão da gravadora após a baixa performance comercial do álbum anterior (The Dreaming de 1982). Então, a cantora resolveu se isolar na sua casa que também era um estúdio, gravando cerca de quarenta e oito faixas que, posteriormente, forma editadas para o total de doze faixas e divido em duas partes, aproveitando a configuração dos vinis e cassetes daquela época. Produzindo e compondo todo o álbum, acredito que a jovem Kate Bush não tinha exatamente ideia que estava em suas mãos um dos melhores momentos da música de todos os tempos, ajudando a remodelar e influenciar uma parte importante do mundo pop. Entender a importância de Hounds Of Love é lembrar uma máxima que sempre repito aqui no blog: pop não é só aquele pop que você curte, independente qual é esse pop e por quem faz esse pop.

Na mesma época que Kate lança Hounds Of Love, mais precisamente um ano antes, outra artista pop tinha lançado outro álbum que também iria mudar a cara do pop: Madonna e o seu Like a Virgin. Obviamente crias da época, Kate e Madonna tem a mesma importância artística ao se falar de legado para o pop, mesmo que completamente diferentes uma da outra e, essa última, tem um peso de popularidade bem maior e mais significativo. Isso, porém, não importa, pois o que é crucial aqui é perceber que as duas contribuíram para o que nos chamamos de pop atualmente. De um lado, aquela que seria a rainha do pop e a sua sexualização premeditada e contestadora e a sua sonoridade comercial e dançante. Do outro, uma jovem britânica que transforma o pop em arte com a ajuda de uma profundidade temática impressionante e uma sonoridade feita através de um trabalho de construção que parece feito literalmente a mão. Duas faces de uma mesma moeda. E a face da Kate é algo que é necessário ser apreciado igual ao um bom vinho: devagar e com atenção a todas as nuances. 

A primeira e mais importante dessas nuances é o fato do álbum ser divido em duas partes que são, realmente, dois álbuns completamente distintos entre si. Então, resolvi dividir essa análise de acordo com a divisão do álbum. Começo com aquele que mostra o lado mais "comercial" do álbum.

Side one: Hounds of Love

O primeiro lado do álbum é formado de cinco faixas, sendo que quatro delas se tornaram todos os singles tirados do trabalho. Isso tem uma clara razão: a primeira parte do álbum é a parte mais comercial do trabalho. Todavia, não deixe essa palavra enganar você aqui, pois comercial para Kate quer dizer algo completamente diferente do que se fazia na época, principalmente comparando com nomes como Madonna e Cyndi Lauper. Fica fácil de perceber isso ao ouvir a música que abre o álbum, também sendo o primeiro single, uma das músicas de maior sucesso de Kate e uma das suas assinaturas: Running Up That Hill (A Deal With God).

Completamente ciente dos avanços tecnológicos na música naquela época, Kate Bush entrega em Running Up That Hill (A Deal With God) o que mais se aproxima de pop art (importante notar a sequencia das palavras). É pop, pois se usa de sintetizadores e aparelhagem em alta naquela para construir uma batida com toques de new wave/ synthpop que consegue ter um verniz radiofônico. É art, pois Kate vai bem fundo no conceito de pop ao elevar/aprofundar a instrumentalização em algo mais substancial e refinado, criando uma canção além do seu tempo e com verdadeira significação artística. É com essa essência que a cantora construiu todo o primeiro lado. Não espere, porém, uma receita pronta.

Quem ouve pela primeira vez Hounds Of Love irá começar a entrar em um mundo tão diferente do que está acostumado que a melhor comparação seria como o País das Maravilhas, visitado pela Alice. Enquanto somos inundados por dezenas que nuances, sons, batidas e escolhas que parecem que não estão no lugar certo, mas que quando ouvidas todas parecem que nasceram para serem dessa forma, Kate Bush nos leva em uma jornada adentro da sua mente, assim como o coelho levou Alice. Logo após Running Up That Hill (A Deal With God), o álbum apresenta a sombria e mais rock Hounds of Love, obviamente a canção que dá nome ao álbum. A canção que fala sobre o momento sobre se apaixonar pela vez, mas como ela fala é que outro grande ponto de Kate Bush como artista ao não ser apenas uma compositora, mas, sim, uma contadora de histórias. Sempre parecendo que seus versos parecem maiores que a melodia da canção, Kate cria um estilo completamente própria que mais parece textos narrativos do que composições. É algo que é genial, pois não existe melhor maneira de definir. 

A viagem continua com a "alegre" e colorida The Big Sky que nos primeiros minutos parece que não vai passar de uma batida descontraída e um refrão poderoso. Aos poucos, a canção vai agregando nova instrumentalização e um coro grandioso ganhando ares épicos e uma atmosfera quase celestial. O ponto fraco do primeiro lado fica por conta da quarta canção: a bela, mas um pouco monótona Mother Stands for Comfort. E esse ponto fraco é apenas comparado com o resto das canções, pois a canção por si é um trabalho excelente. E não é exagero repetir: Kate Bush produziu e compôs todo o álbum, além de ter tocado o piano e o sintetizador ouvidos em todas as faixas. A primeira parte termina com a sensacional Cloudbusting que é a dona de uma das atmosferas mais oitentista do trabalho. Em um mundo "normal", a canção seria um portal para a entrada para a segunda parte. Entretanto, assim como o coelho na história, Kate nos leva bem mais fundo em seu país das maravilhas ao entrarmos em um oceano a noite.

Side two: The Ninth Wave

Depois de entregar uma pérola pop como o primeiro lado seria normal o álbum continuar nessa mesma direção, mas Kate decide revirar tudo de ponta-cabeça ao entregar o segundo lado como um álbum conceitual que narra a história de uma pessoa a deriva no oceano durante a noite como a própria cantora revelou na época. Intitulado The Ninth Wave, o lado B de Hounds Of Love não muda apenas de foco temático, mas, principalmente, de sonoridade essencial, fazendo as duas partes soarem completamente diferentes uma da outra e criando basicamente dois álbuns diferentes em apenas um. Isso não resulta, porém, em algo que se assemelha a um Frankenstein já que esse lado consegue elevar a qualidade do álbum a um nível da mais pura perfeição musical.

Como dito anteriormente, Kate faz na primeira parte do trabalho pop art e, na segunda, é a vez do art pop, isto é, a transformação de arte em pop. Menos "agitado" em relação a primeira parte, The Ninth Wave é uma complexa, transcendental, edificante, épica, áurea e etérea coleção de canções que constroem uma verdadeira e única sequencia de acontecimentos apenas pela utilização da sua instrumentalização. Utilizando de uma dezena de gêneros distintos, mas que se comunicam entre si, Kate Bush cria uma sonoridade tão eloquente e única que parece que estamos diante uma instalação de arte em um museu de arte moderna do que ouvindo um álbum. Completamente cheio de nuances, texturas e sons milimetricamente pensado para carregar a grandiosidade de ideia por trás é uma característica que reforça ainda mais a incredulidade e louvor ao saber que todo o álbum foi produzido apenas pelas mãos da Kate Bush. E olha que até o momento ainda nem falamos sobre a Kate Bush como cantora.

Dona de uma das vozes mais únicas da música de todos os tempos, Kate é capaz de transmitir todos os sentimentos que as suas canções incorporam ao utilizar o seu timbre intimidador que beira o assombrado, a imensa e quase não humana extensão vocal e uma versatilidade monstruosa. No limite entre o pop e o lírico, a cantora constrói uma maneira de cantar tão própria que a mesma precisa desconstruir para ir além do seu lugar comum como é o caso da genial Watching You Without Me. Ainda não apareceu ninguém que pudesse ser comparada com a destreza da cantora em tecer essas intricadas poesias vocais, imitadores e/ou influenciados até tentam sem sucesso de fato. Na verdade, músicas com tamanha carga emocional/criativa não teriam o mesmo impacto se caso fosse cantadas por outra pessoa, mesmo que essas fossem talentosas. Ao transformar cada canção em um verdadeiro acontecimento musical, a artista cria o seu próprio gênero musical dentro de vários outros gêneros.

Como uma boa narradora de suas histórias, Kate nos leva em uma jornada deslumbrante que começa pela triste canção e quase canção de ninar And Dream of Sheep. Passa pela pesada e sufocante Under Ice em que a narrativa se torna mais soturna e perigosa. Chega na caótica Waking the Witch e a suas milhares de vozes saídas de memórias do passado. Passa pela desesperada que parece saída de uma alucinação Watching You Without Me. A luta pela vida é retomada pela tormenta de sonoridade irlandesa Jig of Life para ter o seu final melancólico e épico na sensacional Hello Earth. O álbum termina na canção menos impactante desse lado, mas que traz esperança no futuro com a delicada The Morning Fog, quase criando um final feliz para o "personagem" a deriva.

Ouvir Hounds Of Love é quase uma experiência de cunho espiritual, gerando algo que pode ser comparado com quem sair do corpo para ir na terra fora da percepção humana. Uma viagem que tem Kate Bush como a nossa Caronte nos levando em direção ao desconhecido. Sejamos sinceros: quantos álbuns se podem dizer o mesmo? É por isso que Hounds Of Love deve ser ouvido por aqueles que realmente gostam de música como arte.
Hounds Of Love

The Ninth Wave

Nenhum comentário: