19 de janeiro de 2025

Antes Tarde do Que Nunca

Ray of Light
Madonna




O ano de 1998 marcou dois marcos importante para a carreira da Madonna e, claro, para o pop. Primeiro, a cantora completou quarenta anos de idade já completamente consolidada com uma das maiores artistas de todos os tempos. E em segundo, a cantora entrega o que é considerada por muitos não apenas a sua magnum opus, mas como também da história do pop como um todo. É claro que estou falando do aclamadíssimo e lendário sétimo álbum da cantora: Ray of Light. Antes de entramos nos por menores do álbum é preciso voltar um pouco para dar certo contexto sobre o status da carreira e vida da cantora na época.

Depois do “fiasco” que foi Erotica comercialmente, Madonna precisou fazer o que estava naquele ponto já estava acostumada a fazer ao se reinventar novamente. E naquele ponto era necessário retrabalhar na sua imagem para a mesma voltar a ser vista como vendável para o mercado. Por isso, a cantora tirou o pé do acelerador na sua construção de imagem para lançar o que acho que é um dos melhores trabalhos de transição de carreira de todo os tempos: Bedtime Stories. Sobre o trabalho escrevi alguns anos atrás na sua resenha: “Bedtime Stories mostra a cantora em nova faceta. Dessa vez, a rainha do Pop diminui o volume em todos os sentidos. Ao contrário do explosivo e provocante teor de Erotica. Nada realmente explicito ou diretamente desconcertante, pois em Bedtime Stories as composições refletem uma contemplação da cantora em relação ao amor e as suas desventuras. Claro, ainda existe a Madonna "safadinha" aqui e acolá, mas o clima geral do álbum é bem mais delicado, romântico e, muitas vezes, melancólico. Em nenhum momento, porém, isso reflete em qualquer perda de qualidade, pois podemos observar uma espécie de incubação para o que estava por vim em Ray of Light. Não é apenas no conteúdo que Madonna ficou mais suava em Bedtime Stories, pois pela primeira vez, e única até agora, a cantora fez um álbum basicamente R&B, mesmo não totalmente longe do pop”. Com essa mudança, Madonna voltou a colher ótimos resultados de vendagens com o álbum vendendo cerca de oito milhões de copias ao redor do mundo e voltando ao primeiro lugar da Billboard com o clássico Take a Bow. É necessário apontar que em questão de números, Erotica e Bedtime Stories são parecidos ao olhar em retrospectiva, mas é clara que houve uma mudança no tom como as pessoas falavam da cantora na época indo de “será que foi longe demais?” para “nasce uma nova Madonna”. E essa percepção de imagem se reflete em outras escolhas para a carreira da cantora.

Durante esse tempo de espaço entre Erotica e Ray of Light, a carreira da Madonna continuou a todo vapor dentro e fora da música. Os dois principais e mais marcantes momentos, além claro do lançamento de Bedtime Stories, foi o lançamento do compilado Something to Remember com as maiores baladas até o momento da sua carreira e o lançamento de Evita em que a cantora conquistou as melhores criticas da sua carreira como atriz, levando o Globo de Ouro de Atriz em Comédia/Musical. Todavia, o que mais influenciou na construção do álbum foi a sua vida pessoal, especialmente o seu envolvimento com a cabala e seus estudos e fascínio com hinduísmo e budismo e, principalmente, o nascimento da sua primeira filha Lourdes Maria que fruto do casamento com o cineasta Guy Ritchie. Existiram outros momentos importantes como, por exemplo, a morte do estilista Gianni Versace, mas esse é pilar básico de influencia do álbum. E isso se alinha com o fato que na época do lançamento a cantora estava chegando aos quarenta anos de idade, ajudando a consolidar a sua imagem de maturidade para a mídia e o grande público. Com toda essa bagagem, Madonna então desenvolve Ray of Light ao fazer o que a sempre destacou do resto: ser uma inovadora. Não que a cantora tenha inventado nada, mas, sim, refletir o que estava sendo espalhado nos níveis mais “underground” da música e o leva para o mundo mainstream, sendo envernizado pelo olhar única da Madonna e pelo parceiro perfeito para o momento. Acredito que um momento que explica perfeitamente essa característica da cantora é o que ela fez em Vogue em 1990, mas também é claramente possível ver em toda a sua forma em Ray of Light.

Apesar de ter trabalhado com nomes como Patrick Leonard e Marius de Vries, o grande nome responsável por dar o apoio para a construção da sonoridade de Ray of Light foi William Orbit que até aquele momento já tinha uma longa carreira no meio eletrônico. Todavia, antes de realmente escolher o produtor, Madonna tinha trabalhado com Bayface (produtor de Bedtime Stories) e Rick Nowels (que teve três composições incluída no álbum final). Entretanto, o que Orbit trouxe para o trabalho foi a ancora e a direção decisiva para aquele que seria a sonoridade do álbum depois de ter mandado uma coleção de remixes produzidos por ele pela sugestão de Guy Oseary, presidente da Maverick Records. E o que seria exatamente essa “nova” sonoridade que o produtor trouxe para o reino da Madonna?

Essencialmente, Ray of Light é um álbum eletrônico, fazendo basicamente a sonoridade da cantora dar uma guinada considerável em relação aos trabalhos anteriores. Entretanto, o que é ouvido no álbum é bem mais complexo, intricado e profundo que apenas essa explicação, pois o que estamos diante é sem nenhum duvida um dos trabalhos mais impressionantes da história da música, especialmente ao do mundo pop. Com o conhecimento de Orbit e a sua visão, a sonoridade ouvida aqui é acrescida de uma dose cavalar e impressionante de vários subgêneros do pop e eletrônico como house, new wave, ambient, drum and bass, jungle, trance, EDM, techno, pop rock, dance-pop, electropop, entre dezenas de outros. E essa monumental escolha de influencias, gêneros, nuances, texturas, sons e referencias poderia facilmente terminar em um trabalho disperso ou/ exagerado e/ou estranho, mas isso passa a anos-luz de acontecer aqui. Tudo é fundido de uma maneira tão perfeita que o que acaba se transformando em um trabalho de coesão estupefata em cada momento mostra fluidez natural, fazendo o percurso de Ray of Light uma jornada fascinante e complexa, mas totalmente em linha reta. Obviamente, ao olharmos para trás, o álbum faz totalmente sentido dentro da discografia da Madonna, mas na época a cantora meio que pegou de surpresa o publico e a critica. E mesmo com uma produção tão ousada e inteligente, o trabalho em si não está distante historicamente de alguns trabalhos na mesma pegada da época. Então, o que o faz esse monumento é o fator constante: a própria Madonna.

Como já ressaltado várias vezes nessas resenhas, a Madonna nunca foi apenas uma estrela pop, mas, sim, uma artista com uma visão artística e comercial como poucos tiveram parecido e que ainda é o melhor da história do pop. E isso é ouvido na sua perfeição em Ray of Light. Como dito anteriormente, o álbum foi gravado e lançado na época em que a cantora completava quarenta anos, tendo recentemente dado a luz a sua primeira filha e entrado na sua fase espiritual com os estudos do budismo, hinduísmo e cabala. Essas influencias e, claro, o conhecimento dela na estética pop são usados pensadamente no álbum em todos os seus aspectos, injetando usa personalidade reformulada/reinventada de maneira profunda, deslumbrante, indelegável e indiscutível. E é interessante notar que essa dose pura e na veia da Madonna é ao mesmo tempo o verniz que dá o brilhantismo final ao álbum e, também, a profundidade estética e, principalmente, uma das bases principais do álbum. E já notado claramente e de maneira espetacular logo no inicio na arrebatadora Drowned World / Substitute for Love.

Normalmente, as canções aberturas de álbum da Madonna sempre transitaram entre o dançante e/ou impactante e/o grandioso, mas em Ray of Light muda de direção ao ser ter em Drowned World / Substitute for Love uma canção contemplativa e reflexiva em uma delicada e terna balada down-tempo ambient pop com doses brilhantes de trip hop e eletrônico. Apesar dessa mudança de direção logo de cara, o faixa que virou single não deixa de ser impactante devido a sua construção complexa e extremamente rica. Todavia, o grande destaque, porém, é a impressionante composição da faixa em que a cantora explora de maneira poética e sincera a sua relação com a então recente descoberta da maternidade. E logo nos primeiros versos podemos facilmente notar de exato com a persona dessa nova era da Madonna em que a mesma declara: “I traded fame for love/Without a second thought”. E é nesse quesito que o álbum também mostra a renovação/evolução da Madonna, pois é aqui que vemos a suas melhores e mais impressionantes composições que conseguem criar todo esse apelo estético perfeito, mas também o quanto profundo chegou a lírica da artista ao refletir com maturidade, inteligência e estilo a sua vida naquela época. Se o tema da maternidade é recorrente, Madonna também usa seu lado espiritual para refletir sobre a vida de maneira geral. E o ápice disso é no que eu considero uma das melhores momento da história do pop: Frozen.

Primeiro single do álbum e a primeira canção da história a ser vazada na internet antes do lançamento, Frozen é épica contemplação sobre a necessidade das pessoas se abrirem emocionalmente para poderem encontrar a felicidade. Escrita com uma lírica até simples, o poder da mensagem é alavancado pelo emolduramento genial da produção que cria uma majestosa e gigantesca instrumentalização que consegue refletir essa contemplação intima de uma forma devastadora sem perder esse toque pessoal de vista. Todavia, essa balada downtempo/ trip hop com toques de art pop e uma atmosfera cinematográfica, não seria o mesmo sem a presença dos angelicais, belos, melancólicos e cristalinos vocais da Madonna. Nunca dona de um vozeirão, a cantora foi aprendendo a usar o seu timbre de uma maneira que escondesse a sua limitação e a fizesse soar maior vocalmente. E é aqui que a mesma descobre o seu ápice como vocalista em uma performance com a força de uma avalanche descontrolada, mas que mantem intacta suas principais características. E isso também é visto em ação na canção que dá nome ao trabalho: Ray of Light.

Única canção com uma pegada mais tradicional dançante, a canção é uma explosiva, caótica, deslumbrante, enérgica, texturizada, estilizada mistura de EDM, acid house, disco e psychedelic pop, criando uma das canções mais frenéticas da carreira da cantora. As mudanças e texturas que vão sendo e desfiladas ao longo da sua execução valem por todos os álbuns de algumas cantoras contemporâneas. E a presença magistral da Madonna é a cereja em cima do bolo para comtemplar todo o magistral pacote. Com toda essa força criativa, Madonna é capaz de até entregar uma balada mais tradicional de maneira a faze-la um clássico moderno como é o caso da genial e espetacular The Power of Good-Bye que tem uma das composições mais devastadoras sobre o momento da realização de uma pessoa sobre o fim de um relacionamento. Outros grandes e imperdíveis momentos ficam por conta da lendária e atemporal Nothing Really Matters, a vertente politica e ativista da cantora em Swin, a sensualidade elétrica de Skin e, por fim, a pesada e intrigada Sky Fits Heaven. É claro que em um álbum como Ray of Light é na sua total completude que a genialidade, pois esse é um dos álbuns que vale a pena todos os seus segundos do começo ao fim. E assim Madonna chega no seu ápice de uma forma tão genial que tudo que veio depois meio que fica nas sombras desse colossal trabalho, mesmo que tenha alguns momentos brilhantes. No próxima resenha sobre a carreira da Madonna será sobre um desses momentos em que mesmo não alcançando um grande pico, Madonna ainda mostrou que tinha bastante fogo para queimar na música.


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