Björk
Quando qualquer artista lança um álbum existe um pedido quase invisível e extremamente importante impresso na capa para o público dizendo "Por favor, abdiquei de algum tempo da sua vida e venha mergulhar no meio mundo.". Com níveis de aprofundamento e meios de fazer quem ouve entrar nesse mundo diferente, todos os artistas fazem essa mesma indagação e, claro, obtêm resultados diferentes. Entretanto, alguns artistas ao convidarem não pedem que a gente apenas mergulhe no seu mundo, mas, na verdade, faça uma verdadeira jornada a quilômetros abaixo da superfície, explorando verdadeiras fendas abissais. E quando um artista faz esse tipo de convite é melhor você está preparado para encontra as coisas mais maravilhosas e/ou estranhas e/ou monstruosas e, principalmente, deixará você de alguma forma mudado. Então, não espere nada diferente de uma das artistas que ao longo da sua carreira sempre convidou seu público a fazer esse tipo de imersão, mesmo que o seu novo álbum seja na verdade um trabalho sobre felicidade.
Nono álbum da carreira da Björk, Utopia é como qualquer álbum da cantora: uma complexa, densa e profunda jornada musical dentro da cabeça da artista. Qualquer pessoa que já tenha ouvido ao menos uma canção da cantora pode ter uma ideia do que deve ser o resultado de um álbum inteiro, mas, até mesmo para aqueles que possam se declarar fãs de verdade, embarcar aqui não é uma tarefa fácil. Sinceramente, não consegui ver nenhuma pessoa comprando um álbum da Björk pelo simples fato de gostar dela ou mesmo querer ouvir esporadicamente em momentos de descontração ou para passar o tempo. Ouvir Björk é um ato que precisa ser de amor pela música e, principalmente, de total imersão nessa fenda abissal sem olhar para trás, lembrando que após esse tempo a pessoa sairá diferente daquela que começou a jornada. E isso não é diferente em Utopia, mesmo que o álbum seja tenha uma temática que basicamente fala sobre felicidade. Na verdade, não importa sobre o que a cantora fale, pois a sua cerne reside no fato da artista construir uma sonoridade que pode ser apenas definida como transcendental.
Baseando-se na música eletrônica e alternativa, Björk e o produtor venezuelano Arca vão adicionando uma imensa, rica e incriticamente multifacetado camadas de uma dezena de gêneros que rodeiam a base: indo do clássico, passando pelo experimental e avant-pop e chegando ao folk e o industrial. Não só os estilos e gêneros que aparecem em profusão colossal, mas, principalmente, a introdução de uma gama quase interminável de sons, barulhos, instrumentalizações que fogem do comum ou ordinário e construções tão delicadas e imensas como a teia de uma aranha gigante. É algo tão grandioso e fora do normal para a maioria dos parâmetros da música que a maioria de nos ouve que para conseguir analisar Utopia foi preciso quase uma tarde inteira, sendo tragado por todo o poder por trás de cada faixa. Não foi fácil ou menos divertido no sentido mais clássico da palavra, mas foi algo realmente revigorante e desolador. Poucos artistas possuem a capacidade de misturar tanto sentimentos em um álbum só e, no final, ser algo positivo. Dona de uma capacidade artística desse nível, Björk é inigualável na parte técnica também, pois a qualidade de construção de cada faixa é algo que beira a perfeição e não atrapalha a visão dela sobre a sua arte. E isso que é Utopia: arte em forma de música.
Como disse anteriormente, o álbum é essencialmente a versão da Björk para felicidade. Depois do sombrio Vulnicura de 2015 refletir sobre o então recente divorcio, a cantora agora reflete sobre a "vida depois do amor". Dessa maneira, Utopia fala sobre a felicidade de redescobrir a vontade de viver, de recomeçar e, também, voltar a amar a si próprio e a sua arte. Todos são sentimentos que, na prática, são comuns a muitas pessoas, mas aqui ganham um elevação imagética gigantesca devido as elaborações tão distintas e únicas que a compositora Björk sempre alcançou em suas letras. A artista é capaz de construir uma ou mais imagens tão loucas, estranhas e grandiosas para expressar um sentimento tão "normal" como o processo de divorcio. Apesar disso, o álbum é incrivelmente um dos trabalhos mais acessíveis da cantora em anos. Para dar suporte a esse caminho escolhido, a produção inseriu em todo álbum como base instrumental dezenas de sons da natureza como pássaros cantando e fontes de água. Vocalmente, Björk é Björk, ou seja, espere as performances mais desconstruídas e insanas, mas sempre molduras pelo belo tom dela e seu sotaque forte que dá quase conotações diferentes para as palavras. O único problema do trabalho é a sua duração grande demais como os seus mais de uma e dez minutos. Como observei antes, álbuns como Utopia é algo que deve ser apreciado em seu inteiro nessa jornada, mas é necessário destacar cincoo momentos de pura genialidade: o single The Gate, a que dá nome ao álbum Utopia, a grandiosa Body Memory, a romântica Features Creatures e, por fim, a declaração de amor a música em Saint. Terminando o ano com um dos melhores trabalhos de 2017, Björk continua a sua missão em ser a barqueira e levar os pobres mortais nas jornadas mais profundas do ser humano.
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