9 de maio de 2019

Primeira Impressão

Ladrão
Djonga


Existem momentos na nossa vida que parece que recebemos um tapa na cara do universo, demandando que a gente acorde. Esse tapa pode ser o momento que transborda o balde para que possamos chuta-lo em uma emprego que não está dando mais certo. Esse tapa pode ser após uma única frase desferida por quem a gente ama, fazendo a gente perceber que essa pessoa não é quem a gente deveria estar. Existem bons tapas como, por exemplo, aquele que faz a gente finalmente decidir qual a profissão seguir. Alguns tapas, porém, não obtêm uma reação da nossa parte e, sim, um despertar reflexivo em relação algum situação que a gente precisar olhar ainda mais profundamente. É nesse último caso que entre o tapa que recebi ao ouvir o álbum Ladrão, terceiro trabalho do rapper brasileiro Djonga.

Não tenho a menor dúvida que o Brasil é um país racista, pois só assim que explica a eleição do atual presidente, oitenta tiros em um carro de pai de família, o assassinato da Marielle e a vencedora de um dos principais programas do Brasil ser uma racista.  Apesar de considerar a minha raça como sendo a negra, eu preciso lembrar que o tom claro da minha pele fala mais alto. Nunca passei por problemas que negros com a tonalidade escura passaram como, por exemplo, serem seguidos por seguranças em lojas ao entrar ou ser parado pela polícia simplesmente por estar andando na rua. Não passei por nada disso, mas tenho a consciência que isso é uma realidade vivida por milhares de centenas de pessoas. Essa constatação já faz parte da minha vida já tem alguns bons anos, mas, infelizmente, parece que algo foi "amaciado" em mim. Vivendo no nosso país, especialmente nos últimos anos, tenho a impressão que fui criando um escudo para receber noticias sobre os principais problemas sociais. Isso ajudou a entorpecer a dor, o horror, a raiva e indignação que deveria existir, mas que por uma questão de sobrevivência precisou ser colocado em um modo "automático". Felizmente, existe artistas como o mineiro Djonga para lembrar que precisamos acordar e olhar de verdade para o que está bem na nossa frente. 

Ouvir Ladrão é como acordar de um longo e profundo sono, mas que tivemos previas sobre a realidade dentro dos nossos sonhos. Claro, esse despertar irá surtir efeito provavelmente apenas naqueles que realmente um dia já tiveram realmente a consciência verdadeira sobre o mundo que nos cercas. Para aqueles que acreditam em racismo reverso ou que no Brasil não existe nenhum tipo de preconceito, Ladrão irá ser uma coletânea de canções mimizentas de um cara marrento, arrogante e raivoso que apenas fala despropérios. Se você pensa assim, realmente não será um álbum para vocês e, sinceramente, nem precisa ler nada que sai desse blog. Entretanto, se você realmente sabe a verdade, o álbum irá mostrar ideias que estão ligadas as suas e, ao mesmo tempo, irá expandir a mente ao mostrar o lado da moeda de quem realmente está estampado em relevo.

Nascido em Belo Horizonte, na favela do Índio, Djonga começou a trabalhar com a música aos 16 anos, sendo inspirado por Racionais MCs e pelas poesias que lia na escola. Chegando ao seu terceiro álbum, o rapper não está nada disposto a baixar a cabeça para ninguém e apresenta em Ladrão uma coragem impressionante. Como dito antes, alguns podem achar o rapper arrogante ou marrento, mas essas devem ser características encaradas como sendo extremamente positivas já que são delas que a produção consegue retirar toda a sua força. Djonga não quer apenas meter o dedo na ferida e, sim, rasgar a mesma com a faca mais afiada possível. A intenção do rapper é de provocar para fazer quem ouve repensar, mesmo que seja pelo genuíno choque. Partindo de um ponto de vista que muitos vivem, mas que poucos tem a oportunidade de contarem a sua verdade, o rapper é uma verdadeira metralhadora de verdades nadas secretas, criticas mais ácidas e doloridas que suco de limão nos olhos, reflexões ásperas e uma fúria esmagadora e crônicas nuas e cruas de quem vive à margem da sociedade. Cada faixa é um retrato em alta definição sobre todo o que parte da sociedade quer esconder. Racismo, empoderamento negro, descaso do poder público, cultura afro e embranquecimento são apenas alguns assuntos que Djonga toca em Ladrão. E não apenas tocar, mas, sim, tece uma coletânea de manifestos em forma de música. 

Dono de uma lirica direta, relativamente simples, atual, limpa, sincera e de uma beleza bruta, o rapper alcançar um patamar de criação simplesmente perfeito. Logo na primeira e explosiva faixa já é possível sentir o impacto que o álbum produz no instante que Djonga declara: E parece que liberaram o preconceito/ Pelo menos antigamente esses cuzão era discreto. Hat-Trick é o portal feito de ouro maciço e incrustado de uma verdade desconcertante que dá o tom para toda a verborragia de Djonga. Logo em seguida, o rapper já tinha o chão de qualquer uma ao mandar Bené os versos: O que vale mais: Um jovem negro ou uma grama de pó?/ Por enquanto ninguém responde e morre uma pá. Logo no verso seguindo é possível ver reflexões ainda mais pontuais quando o rapper entoa que "Perplexo só fica quem crê em conto de fadas/ No país onde a facada que não aleija, elege". Ácido, irônico, pontual, atual, sincero e com uma fúria que não nem como não sentir, Djonga faz a sua mensagem ser de uma urgência sufocante. Nem sempre concordo 100% com o rapper, mas não tenho como não desviar os olhos e respeitar cada opinião, cada reflexão e cada critica que o mesmo construir. Lúcido o tempo todo, mas conseguindo sonhar/delirar quando necessário. Forte o suficiente para sustentar as suas mensagens, mas emocional quando o momento pede, principalmente quando toca em assuntos familiares. Conseguindo incorporar o rap internacional com a sua base de influências nacionais, Djonga entrega em Ladrão uma obra de uma grandiosidade que parte do público parece não está pronta para contemplar, mas o mesmo não está disposto a retroceder para agradar quem quer que seja. E olha que sonoramente, o rapper ainda teme espaço para crescer.

Ladrão é um excepcional, grandioso e poderoso álbum de rap/hip hop que consegue costurar referencias do rap nacional com toques do norte americano de forma inteligente e sem abaixa a cabeça. A produção é limpa, direta e com uma versatilidade impecável que dá para cada faixa personalidade única, criando um álbum pungente, épico e de uma força artística sem comparação. Todavia, o rapper ainda pode crescer, pois as canções poderiam serem sonoramente ainda mais arriscadas ao sair dessa altíssima zona de conforto que o mesmo alcança. Texturas, fusões como outros gêneros nacionais ou não, parcerias com artistas de fora do rap/hip hop e ainda mais nuances seriam suficiente para elevar Ladrão ainda mais. De qualquer forma, Djonga entrega uma obra espetacular do começo ao fim que, por enquanto, parece perfeita para o momento. Além dos momentos já citados, o álbum apresenta dois outros momentos geniais: a avassaladora parceria com o rapper Filipe Ret em Deus e o Diabo na Terra do Sol e a homenagem emocionante para a avó de Djonga em Bença. Outros momentos de destaque ainda ficam por conta da romântica Leal, a que dá nome ao álbum Ladrão, a intro Mlk Atrevido inspirada em um samba e a que fecha o álbum FALCÃO que termina com um surpreendente e bem vindo sample de Elis Regina cantando Romaria. Após ouvir o álbum e entender perfeitamente as palavras de Djonga acredito que tenha acordado de uma forma que espero que não vou fechar os olhos nem por um segundo por um bom tempo. E, queridos leitores, esse é uma das funções da música.


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