3 de maio de 2020

Primeira Impressão

SAWAYAMA
Rina Sawayama





Expectativas. Todos os dias das nossas vidas somos bombardeados com uma profusão de expectativas que nem sempre sabemos lindar muito bem. Existem as expectativas dos outros tem em relação a gente. As expectativas que colocamos sobre as outras pessoas. As expectativas que a gente tem sobre nós mesmos. As expectativas que temos em relação as expectativas dos outros sobre a gente. Expectativas em cima de expectativas. Infelizmente, muitas das vezes essas expectativas são frustradas, pois é fácil construir falsas ilusões ao se basear naquilo que a gente quer e, não, aquilo que realmente a gente vai ter. Entretanto, algumas vezes, o resultado dessas expectativas superam para melhor o que a gente esperava. E é nesses momentos que acontecem milagres em que todos os planetas parecem se alinhar para a nossa genuína surpresa e grata alegria. A japonesa radicaliza na Inglaterra Rina Sawayama é dona de um desse milagres com o lançamento do seu genial álbum debut: SAWAYAMA.

Apesar de já ter uma carreira desde 2013 e ter atraído a atenção de parte da crítica e do público com os lançamentos de singles soltos e um EP, a cantora de vinte e nove anos apenas chamou a minha atenção esse ano. Uma pena que demorei tanto para conhecer a cantora, mas isso foi corrigido ao descobrir essa promissora diva pop/indie que parecia ser um sopro de ar fresco. Todavia, a minha expectativa antes do lançamento do seu debut era boa ao esperar um honesto e divertido álbum pop/indie pop que seria uma delícia de ouvir por algumas vezes. O que recebi, porém, foi um verdadeiro tapa na cara, levando ao chão todas as minhas expectativas de uma forma que poucas vezes tive a oportunidade de viver nos meus anos aqui no blog. Achando que receberia um divertido álbum pop, SAWAYAMA é na verdade uma obra de arte pop que funciona em camadas que nunca pensei que teria a oportunidade de presenciar. E agora posso dizer sem nenhum medo: nasce um verdadeiro marco para a música pop.

A primeira grande quebra de expectativa sobre o álbum é a acreditar qual seria a sua pegada geral: de um bom dance-pop/indie pop para na realidade uma espetacular mistura de electropop, indie pop, indie rock, por rock, nu metal, R&B, k-pop, art pop com toques de synth-pop aqui e ali. O melhor para explicar a profundidade e intricada da sonoridade do álbum é explicitar como o álbum funcionaria nas mãos de outros artistas: 

*Para a Britney, Sawayama seria a sonoridade em um nível artístico que a mesma nunca chegou perto;
*Para Christina, Sawayama seria a evolução pop que a mesma tentou várias vezes, mas nunca foi capaz de construir plenamente;
*Para o Evanescence, Sawayama seria a relevância e artística sonora que a banda nunca teve força de alcançar;
*Para a Gwen, Sawayama seria o trabalho que repetiria o seu flerte com a genialidade que teve em Love.Angel.Music.Baby;
*Para o Justin (os dois), Sawayama seria algo que os mesmos nunca entenderiam como fazer;
*Para a GaGa, Sawayama seria a sua consagração final e algo que os seus fãs acham que a mesma já fez;
*Para qualquer banda emo dos anos dois mil, Sawayama seria o álbum que eles acham que já fizeram;
*Para Avril, Sawayama seria o álbum que iria fazer depois que todos esquecerem que a verdadeira foi trocada no começo da carreira;
*Para a Rihanna, Sawayama seria um álbum lançado já que a cantora esqueceu a carreira de cantora no churrasco.

Tirando os gracejos de lado, a grandiosidade sonora de SAWAYAMA é tão impressionante que consegue unir em apenas um álbum todas essas tribos, estilos, gêneros e influências em uma grande, coesa e avassaladora orgia sonora. 

Dona de uma produção capitaneada por Clarence Clarity por quase todo o álbum, SAWAYAMA é como se fosse uma espécie de musical contemporâneo sobre o pop em que cada música representa uma fase e/ou gênero diferente, mas que no final das contas todo parece estar ligado fortemente por uma linha de raciocínio que parece invisível a olhos nus. Tecnicamente esplendoroso, encorpado e substancial, o álbum não acerta apenas na construção do todo, mas, principalmente, na construção individual de cada canção. Não apenas instrumentalmente, mas na adição de nuances, texturas, batidas, sabores, influências e surpresas que cria em cada faixa um espetáculo sonoro que prende quem escuta em uma espiral sem volta. E Rina não espera muito para começar a montanha-russa sonora: começando pela batida indie rock/pop rock de Dynasty que remete ao uma mistura de Avril com Aguilera em Fighter, passa para a art pop/indie/pop rock/electropop XS que parece ter saído da fase de ouro da Gwen com a GaGa do The Fame e chegando na nu-metal/ pop rock/indie pop STFU! em uma explosão sonora que nunca o Evanescence ou alguma banda emo teve o poder de entregar. O mais impressionante, porém, é que mesmo com todas essas semelhanças com sonoridades de outros, Rina Sawayama é uma popstar com uma personalidade carismática, instigante, poderosa e completamente distinta. Eis aqui a segunda quebra de expectativa.

Se podemos comparar a sonoridade ouvida no álbum é porque a Rina não teve nenhum medo de refletir as suas influências em um trabalho que as elevam em um outro patamar. Todavia, o resultado final não seria o mesmo se não fosse pelo brilhantismo da cantora. Além de ser uma figura ímpar e dona de uma estética sensacional, Rina carrega todo o álbum como se fosse uma gigante de seis metros segurando um peso que para outros seria de uma tonelada. Versátil em todos os sentidos. Doce como uma bala. Apimentada como wasabi. Sensual sem ser vulgar. Roqueira. Diva pop. Lenda indie. Estrela k-pop. Divertida. Melancólica. Tradicional. Ousada. Forte. Frágil. Esses adjetivos ainda parecem pouco para definir o quanto genial é a Rina na construção do álbum. Além disso, Rina é vocalmente uma cantora refinadíssima, dona de um inteligência rara e com um alcance impressionante que fazia algum tempo que uma cantora pop não aparecia com o talento. Isso fica bem claro na discrepância entre faixas como na electropop Comme des garçons (Like the Boys) que exige o lado mais diva de Rina e a pop rock explosiva Who's Gonna Save U Now? em que a cantora é exigida vocalmente. E apesar da diferença tão grande, Rina entrega performances perfeitas e impressionantes com diferentes pegadas. Por fim, a terceira quebra de expectativa é que SAWAYAMA é de uma profundidade lírica desconcertante.

Normalmente, um álbum pop é esperado que tenha canções com letras feitas para grudar na cabeça da gente igual chiclete. E isso SAWAYAMA entrega com louvor com refrões marcantes e versos com uma gramática relativamente fácil. O que Rina mostra a mais é uma capacidade de ir além tematicamente ao falar sobre assuntos espinhosos e que normalmente não estão em voga nem nos trabalhos que tem a mesma pegada artística. Famílias disfuncionais, solidão, empoderamento, superficialidade, amizades tóxicas e as verdadeiras, amor próprio e sentimento de inadequação desfilam em letras inspiradas, lindamente construídas e com passagens excepcionais. Uma das passagens que mais gosto que mostra o talento refinado de Rina para escrever letras pop e com uma mensagem é o primeiro verso da triste Bad Friend sobre a confissão das mancadas que uma amiga cometeu com alguém especial: 

We ran through the bright Tokyo lights, nothing to lose
Summer of 2012, burnt in my mind
High, crazy, and drunk, 5 in a room
Singing our hearts out to Carly, sweat in our eyes

Aliada com a sentimental e delicada performance da cantora, o começo da canção é uma verdadeira facada no coração para alguém que já perdeu uma amizade querida. Enquanto isso, a electropop/art pop com toques de k-pop Akasaka Sad destrincha a solidão de uma artista no meio da multidão. A balada pop Chosen Family é sobre a família que fazemos fora da nossa família. Love Me 4 Me faz uma clara referência a famosa frase da RuPaul sobre amar a sim mesmo em um pop/R&B que parece saído dos anos noventa. A brilhante dance-pop/electropop/synth-pop Tokyo Love Hotel é o aceno de Rina para o amor. E, por fim, Tokyo Takeover é a exaltação as suas origens nipônicas. Essas faixas ajudam a fazer de SAWAYAMA um álbum arrebatador, mas não são metade da imensa qualidade e brilhantismo que Rina apresenta que como quem nada entrega um dos melhores álbuns dos últimos dez anos. Nasce um clássico.


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