12 de maio de 2020

Primeira Impressão

Fetch The Bolt Cutters
Fiona Apple




Nem sempre o trabalho de um crítico é apenas colocar em palavras as qualidades e defeitos que fazem de um álbum um trabalho bom ou ruim. É preciso lapidar as palavras para tentar explicar o que tem por intuito fazer a gente sentir, isto é, explicar algo que não tem muita explicação a não ser para aqueles que sentem. Claro, discorrer sobre a parte técnica é até relativamente fácil, mas isso também é um trabalho cruel, espinhoso e ingrato. Imagine o problema que surge quando o álbum analisado quebra as barreiras ao entregar uma verdadeira revolução sonora que parece ser algo inexplicável? Eis a questão que o inacreditável Fetch The Bolt Cutters da Fiona Apple levanta.

Dona de uma carreira praticamente irrepreensível com quatro álbuns aclamados pela crítica, Fiona Apple chega aos quarenta anos com uma das maiores artistas da sua geração sem nunca ter alcançando um sucesso comercial gigantesco ou um acolhimento amplo pelo mainstream de forma ampla, mas criando uma fiel legião de fãs ao redor do mundo. É clichê falar que, obviamente, a cantora não precisa provar mais nada para ninguém e acredito que isso nem passe pela sua cabeça. Livre de qualquer amarra criativa ou comercial, Fiona parece estar muito mais interessada em criar a sua arte da maneira que a mente achar que deve ser feita. E é aqui que as coisas se complicam, pois Fetch The Bolt Cutters é provavelmente a melhor descrição do que a mente humana é capaz de produzir em forma de música. 

Preciso ser sincero com vocês: acredito que não serei capaz de transmitir fielmente o que é Fetch The Bolt Cutters, pois, como dito anteriormente, o álbum é aquele que "quebra as barreiras ao entregar uma revolução sonora que parece ser inexplicável". Então, peço desculpas se o texto não puder de fato explicar o que realmente é necessário para vocês entenderem os meus sentimentos em relação ao trabalho. Devido a sua monstruosidade sonora, ouvir Fetch The Bolt Cutters é como ser jogado para fora da atmosfera diretamente dentro de um buraco negro. Você sabe o que está acontecendo, mas não tem a menor ideia do que realmente está se passando a sua volta. Dizer que a produção é ousada é quase um insulto. As expetativas que o público tem sobre o que é a sonoridade da Fiona ou mesmo de forma genérica sobre o que seria o indie/ indie pop/experimental é jogado no lixo, triturado, reciclado, novamente triturado, esmagado, enrolado em ferro fundido, reciclado de novo para só depois ser reconstruído, renovado e recriado como um obra em uma realidade que parece fora do tempo e espaço. Fetch The Bolt Cutters é atemporal e, ao mesmo tempo, moderno para uma época que ainda não chegou. Fetch The Bolt Cutters é poderoso do começo ao fim, mas também é confessional ao ponto de parece feito apenas para o entendimento da própria Fiona. Requintado e áspero. Perfeito e com vários problemas. Complicado e, contrariamente, compreensível. Épico e íntimo na mesma proporção. Fetch The Bolt Cutters é uma revolução sem reinventar nada. É um marco para música que não quer ser mais que a realização do ofício de Fiona. É tudo isso e também não é nada. E, acreditem, isso não é nem a superfície do que realmente é o álbum.

Cada canção no álbum é como um pequeno álbum de apenas alguns minutos. Ouvir uma faixa de Fetch The Bolt Cutters é ter uma noção de como é o álbum sem realmente entender. Existe uma profusão tão imenso de batidas, sons, texturas, instrumentos, experimentos sonoros, surpresas, quebras e construções inusitadas de cada canção que tudo se torna uma experiência inusitada, surpreendente e completamente imprevisível. A gente sabe como uma canção começa, mas não ter a menor ideia de como vai ser já da sua metade para frente. Imagina então como cada faixa irá terminar. Uma experiência única e, sinceramente, angustiante.

A genialidade que Fiona e os seus três colaboradores coloca em Fetch The Bolt Cutters é algo quase não humano, pois o espetáculo entregue é uma verdadeira mistura de sonho, pesadelo, delírio e realidade em apenas um pacote. Para se ter uma ideia da complexidade sonora, a produção deve ter usado entre trinta à quarenta instrumentos diferentes que incluem, além dos tradicionais, sons de presilhas de cabelo, pisadas, colares, respiração e até latidos dos cachorros de Fiona. O resultado é uma explosão sonora que arranca a gente da cadeira que, ao mesmo tempo, caminha em um minimalismo impressionante já que é possível ouvir cada instrumento com detalhe. Sinceramente, ouvir Fetch The Bolt Cutters é uma experiência cansativa e fascinante desde o seu primeiro acorde até a última nota que até mesmo os "erros" são parte fundamental do resultado final.

Longo, um pouco áspero no começo e nada convidativo para qualquer público, Fetch The Bolt Cutters é um trabalho feito para deixar quem ouve desnorteado. Isso é ótimo porque a música serve para fazer a gente sentir todos os sentimentos possíveis. Isso é péssimo porque afugenta boa parte do público que não está acostumado ou/e disposto a sentir tudo isso ao mesmo tempo. Além disso, a primeira metade do álbum é bem mais difícil de assimilar do que a sua metade final. Obviamente, nada aqui é fácil, mas depois de se familiarizar com o que está escutando dá para perceber uma diferença entre o começo e o fim. Tendo isso em mente ficaria claro que todo o resto caminharia para o mesmo lado, mas isso não acontece exatamente da maneira como poderia se imaginar. Primeiramente, a Fiona Apple propriamente falando.

Quando resenhei o debut da cantora Tidal escrevi sobre a sua voz/performance: "dona de um timbre sem igual, Fiona dá para as suas performances uma força impressionante, transitando entre a raiva contida e doce melancolia.". Reitero o que disse para as performances aqui em Fetch The Bolt Cutters, mas é necessário dizer que Fiona eleva tudo a décima potência. A cantora não apenas entrega as suas melhores performances vocais como, também, uma das melhores da história da música. É como se Fiona fosse a Meryl Streep em A Escolha de Sofia ou a Charlize Theron em Monster. Avassaladora, perfeita, desconcertante, complexamente emocional e de uma força atemporal é o que podemos dizer superficialmente, pois ao prestar atenção com cuidado é possível perceber uma raiva descontrolada, uma urgência demandadora, uma acidez desconfortante e um humor feroz em todos os momentos em que a cantora está cantando. Algo que poderia resultar em algo quase impossível de conseguir digerir em algum trabalho que não tivesse a estrutura sonora do álbum. Assim sendo, a força descomunal que a cantora aplica em todas as canções consegue encontrar sintonia perfeita com a descomunal força das composições que arremata todo a ferro e fogo.


O mais curioso de Fetch The Bolt Cutters é a sua acessibilidade em relação a sua parte lirica. É necessário dizer que não tem nada haver com aquela facilidade de entendimento que o pop normalmente precisa ter para poder realmente ser bom. Com um trabalho tão grandioso e completo como esse era esperado que Fiona "viajasse na maionese" ao entregar letras com semântica rebuscada com significado misteriosos e difíceis de compreensão. E o que acontece é completamente o contrário. Ou quase isso. A verdade é que o álbum é abarrotado de composições de uma genialidade criativa impressionante com elaboradíssimas construções gramáticas que usam e abusam de saídas impensáveis, ideias mirabolantes e momentos desconcertantes. Todavia, Fiona se usa de uma qualidade que a sempre distinguiu como compositora desde o começo da carreira ao saber como falar diretamente e sem rodeios sobre os seus mais profundos e sombrios pensamentos e sentimentos. Direta, mas poética. Moderna, mas sabiamente atemporal. Sentimental, mas de uma sinceridade orgânica e crua. Elegante, mas despachada. Lúdica, mas quando necessário rebuscada. Escrevendo sozinha quase todas as faixas, apenas uma não é creditado o seu nome, Fiona coloca tudo isso em mesmo cadeirão para criar crônicas íntimas sobre assuntos complicado, polêmicos e, alguns casos, pouquíssimo explorados que vão desde a relacionamentos interpessoais, a relação de Fiona com outras mulheres, bullying e até mesmo assédio sexual. Normalmente, quando faço uma resenha de um álbum vou colocando aos poucos quais as faixas de principal destaque, mas, sinceramente, não consegui incorporar os destaques já que todas as canções mereciam ser mencionadas. Decidi, então, colocar o meu top três pessoal das canções de Fetch The Bolt Cutters

3°: Newspaper: uma crônica de um fim de relacionamento complicado e as suas repercussões;
2° For Her: o cruel antagonismo entre o humor da composição com a sua temática pesada e importante;
1°: Shameika: divertida, icônica e com uma instrumentalização genial, a canção é a que mais repercutiu em mim após ouvir o álbum.


Devo admitir que Fetch The Bolt Cutters não é o meu álbum preferido do ano. Difícil de ouvir e ainda muito mais complicado de escrever, o álbum é, sim, uma obra de arte moderna que já entra para o hall de um dos grandes acontecimentos da música de todos os tempos. E nem todas as palavras podem explicar toda a sua importância e grandiosidade. Citando a grande pensada moderna, Adressa Urah antes de ser crente: "Ai Gabi, só quem viveu sabe!".

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