So
Peter GabrielExistem alguns álbuns que têm uma importância vital para a história da música que nem sempre são lembrados com frequência devido a vários fatores, como, por exemplo, a longevidade comercial do artista ou a descoberta pelas novas gerações. Em 1986, o britânico Peter Gabriel lançou seu quinto álbum, intitulado So, marcando uma mudança em sua sonoridade ao passar de um roqueiro experimental com status de cult para um astro mainstream de imenso sucesso, com vendas de mais de 7 milhões ao redor do mundo.
Apesar de não tão lembrado atualmente, caso não se seja um “especialista” em música, o álbum tem uma importância crucial para o atual cenário musical, no momento em que foi um dos pioneiros em fundir perfeitamente o pop comercial com o lado mais experimental, criando um legado que até hoje é sentido em um leque bem maior de artistas do que se pode imaginar.
Ex-vocalista da banda Genesis, o cantor já tinha uma carreira sólida quando lançou So, mas foi nesse momento que seu nome foi transformado em uma força criativa reconhecida pelo grande público. E isso se deu por uma mudança sonora importante, que foi criar um verniz “radiofônico” para sua sonoridade. Entretanto, essa mudança não tirou a base principal da essência que o artista construiu nos quatro álbuns anteriores. Vanguardista e conhecido pelos seus experimentos sonoros, Peter já tinha entregado trabalhos que não necessariamente tinham apelo universal ou de fácil assimilação por um público mais abrangente, mesmo sendo muito bem recebidos pela crítica ao longo dos anos. Isso muda, porém, quando entra na equação o produtor Daniel Lanois.
Conhecido pelo seu trabalho ao lado do U2 e Brian Eno, o produtor já tinha trabalhado com Peter no ano anterior na trilha sonora do filme Birdy, mas é em So que a mágica acontece. A união dos dois na produção do álbum trouxe ao resultado final a fusão perfeita, genial e atemporal entre o lado experimental e o comercial, em que ambos são contemplados de maneira extremamente equilibrada. Não há pontas soltas, não há pontos cegos, não há lugares vazios ou espaços superlotados. So é um álbum que encontra o equilíbrio perfeito entre todas as suas referências, influências, experimentos, sons, nuances, texturas e inovações, enquanto acha o lugar exato para deixar tudo “palatável” para que possa ser consumido por uma grande parte do público que não teria acesso à sua sonoridade naquela época e, sinceramente, até os dias de hoje, devido ao alto nível de atemporalidade impregnado no álbum. E a grande questão que fica é: qual é exatamente essa sonoridade?
Como já expressado, Peter sempre foi adepto a buscar e explorar novos sons para acrescentar à sua sonoridade, e em So não poderia ser diferente. O álbum, em teoria, é um trabalho de rock/pop incrementado e injetado com uma imensa gama de outras influências, texturas, nuances, sons e perspectivas diferentes e de uma amplitude imensa. Aqui é possível ver inclusões de art pop, indie rock, new wave, funk, progressive pop, baroque pop e worldbeat. Todavia, o grande diferencial não é apenas a inclusão desses gêneros de maneira a buscar referências das sonoridades que os mesmos geram, mas, sim, se aprofundar de maneira a fundir tudo isso em uma massa pura, coesa e orgânica. É importante apontar a relevância de sonoridades de outros países na construção das canções em So, pois a produção incorpora de maneira brilhante aspectos de sonoridades ouvidas ao redor do mundo. Esse é um dos aspectos mais importantes da sonoridade do álbum e que faz parte do seu legado: a exploração fora das fronteiras geográficas. E uma dessas buscas chegou aqui no Brasil.
Em Mercy Street, a produção constrói toda a sua climática atmosfera na base principal de uma percussão bem familiar aos nossos ouvidos. Muito antes de o funk virar produto de exportação, Gabriel decidiu, em 1984, passar um tempo no Rio de Janeiro para explorar novas sonoridades. Dessa viagem, o artista conheceu o músico brasileiro Djalma Corrêa, que toca a percussão ouvida na canção. E a construção da canção é influenciada diretamente pelo nosso forró, tanto que, durante um tempo, a canção teria o nome do gênero brasileiro. Ouvir pela primeira vez a canção sem saber desse fato é um susto imenso, pois logo nos primeiros momentos da música a batida já ganha ares conhecidos, especialmente quando começa a tocar o triângulo, tão específico e famoso do forró. E o susto ainda aumenta quando notamos todo o entorno diferente do que o som está envolto, ao ser uma densa e pragmática art rock/pop. É estranho no começo, mas aos poucos as peças vão se encaixando em uma canção impactante e de um brilhantismo ímpar devido à maneira tão precisa da produção de fundir tantas texturas sonoras em uma canção tão imponente criativamente. Apesar de Mercy Street ser uma canção espetacular, ela não é a melhor do álbum e também não é aquela que melhor “explica” toda a qualidade do disco. Esse posto fica por conta de Sledgehammer.
Tenho que reconhecer que Sledgehammer faz parte do meu consciente musical desde minha adolescência, pois assistia ao clipe na antiga MTV durante as minhas férias na casa dos meus padrinhos. E, queridos leitores, o clipe da canção é possivelmente um dos melhores, mais icônicos e geniais de todos os tempos, que até hoje é algo completamente insuperável. Sério, até hoje assisto ao clipe e fico sem ter total noção de como foi feito na sua completude e, principalmente, o quanto atemporal é o trabalho, ainda mais comparado com os clipes lançados atualmente. Merecidamente, venceu um recorde de nove MTV Video Music Awards, quando o prêmio ainda valia alguma coisa. Todavia, a canção se sustenta também devido à sua impressionante, épica e genial produção, que a transforma em uma peça musical perfeita, que é perfeitamente pop sem exatamente ser pop.
Sonoramente, a canção é uma mistura extraordinária de new wave, funk, dance rock e soul, que cria um trabalho simplesmente irresistível, dançante, viciante, delicioso, grudento e maduro, que faz a gente querer sair por aí dançando com sua contagiante e sofisticada batida. Desde os primeiros acordes com instrumentos de sopro até a batida “cair” iniciando de fato a canção, Sledgehammer já consegue criar o efeito de envolver quem a escuta em sua teia sonora de maneira irreversível, devido à sua imensa atenção ao cuidado. Cada novo momento da canção apresenta algo interessante para que prestemos atenção, mesmo que realmente não nos atentemos bem aos detalhes que compõem a força total da música. O mais importante é a construção instrumental, que é complexa e reflete bem a maneira como a produção explora texturas sonoras, mas que aqui é envolvida por uma camada grossa e brilhante de verniz popular, transformando-a em um hit mundial. Atingiu o número 1 da Billboard e recebeu três indicações ao Grammy. Um dos auxílios para essa finalização vem da maneira como é composta a letra da canção.
Sledgehammer é impressionante porque, mesmo sem nada explícito, trata diretamente e sem pudores sobre sexo. Ao criar metáforas bem elaboradas, comparando várias partes do ato sexual com outras coisas – como, por exemplo, o nome da canção, que significa literalmente "marreta", ou pedidos à sua parceira para “abrir sua cesta de frutas” –, Peter cria uma composição à frente de seu tempo, falando de um assunto polêmico sem necessariamente ser explícito, ao mesmo tempo em que o cobre com uma camada incrível de apelo pop, especialmente no refrão. Entretanto, a canção não possui a melhor composição do álbum nem reflete o cerne lírico de Gabriel. Isso é deixado para a devastadora Don't Give Up.
Peter sempre permeou suas composições com temas importantes e de grande consciência social, como, por exemplo, a canção Biko, que é um protesto contra o apartheid na África do Sul. Em Don't Give Up, no entanto, o tema é menos específico historicamente, mas não menos importante ou pungente. A canção aborda a saúde mental do homem comum em relação aos desafios, medos, decepções e incertezas dos tempos em que vive. Nesse caso, o narrador é um homem desempregado, que precisa enfrentar os problemas familiares que isso traz para sua família. É uma composição de uma tristeza e melancolia impressionantes devido à sua belíssima construção lírica, que evidencia sentimentos que muitos enfrentam de maneira tão comum que nem sempre notamos. Todavia, o grande toque de genialidade está no fato de Don't Give Up ser um dueto, no qual a contrapartida da narrativa é a voz da “esposa” incentivando o homem a não desistir e lembrando-o de sua importância para os seus entes queridos.
A escolha não poderia ser mais genial, pois quem canta o simples e comovente refrão e outros versos é a também genial Kate Bush, que, no mesmo ano do lançamento de So, lançou sua obra-prima Hounds of Love. A dinâmica entre os dois é algo que só posso definir como pura genialidade, pois dá à canção um retrato da época – ela reflete a era Thatcher na Inglaterra – e, ao mesmo tempo, uma atemporalidade imensa que alcança qualquer pessoa em qualquer lugar. Outro ponto importante da canção é a progressão final, que dá ares de esperança ao instrumental, inicialmente melancólico, refletindo a composição e mostrando que há luz no fim do túnel. Outros momentos que preciso citar aqui são a imponente Red Rain, que é uma das melhores primeiras faixas de um álbum dos anos oitenta, e Big Time, sobre a cultura de enriquecimento e poder desenfreados que explodiu nos anos oitenta. Mesmo sem ter esse alcance com parte do público atualmente, So foi um dos responsáveis por mostrar que era possível criar algo comercialmente vendável sem que o artista perdesse seu alcance artístico. Esse é apenas um dos legados de Peter Gabriel.


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