Miley Cyrus
Durante todos os anos do blog, desenvolvi a regra de que, sempre que vou resenhar uma música ou álbum, tentarei ser o mais imparcial possível, evitando interferências externas positivas ou negativas. Nem sempre, porém, isso funciona plenamente. Quando comecei a ver as médias das resenhas de Something Beautiful, da Miley Cyrus, tive a impressão de que o álbum seria uma decepção, pois ele vem recebendo uma onda de críticas bastante mistas. Todavia, a percepção de parte do público é muito mais positiva, como mostram as médias no site Album of the Year. Isso acabou bagunçando um pouco minha cabeça. Felizmente, quando fui ouvir o álbum, consegui afastar essas cacofonias para poder tirar minhas próprias conclusões. O resultado foi algo que eu não esperava de forma alguma.
Something Beautiful não é apenas o melhor álbum da carreira da Miley, mas também um dos melhores trabalhos da música pop recente e, sem dúvida, o melhor entre as cantoras da geração da artista. Sinceramente, a reação mista dos críticos é algo que não consigo entender completamente, pois o trabalho tem pedigree suficiente para ser melhor apreciado por especialistas em música. Felizmente, a recepção do público que realmente escutou e entendeu o álbum como um todo conseguiu captar toda a essência de uma consagração artística e criativa de uma artista que, aqui, encontra sua melhor persona.
Desde que surgiu como Hannah Montana até agora, Miley demonstrou, em cada nova era, uma personalidade artística que, de alguma forma, refletia seu estado pessoal na época do lançamento. Os resultados comerciais e artísticos variaram bastante, mas sempre foi interessante ver como ela navegava por essas mudanças, emergindo sempre diferente do outro lado. Até agora, o melhor momento da cantora foi a fase roqueira do excelente Plastic Hearts, de 2020, no qual apontei que essa “persona não apenas funciona para a imagem já forte da cantora, mas, principalmente, se mostra um acerto sonoro para separá-la da multidão”. E isso posso afirmar que acontece ainda mais e melhor em Something Beautiful, pois aqui existe uma apuração estética, sonora e temática que eleva a sonoridade da cantora para um novo patamar. Então, qual é essa nova persona da Miley?
Acredito que a melhor definição seja a de que é a versão madura da artista Miley Cyrus, pois aqui é evidente que vemos a cantora em seu estágio mais avançado sonoramente. Entretanto, com o desempenho comercial bem baixo e as críticas mornas no lançamento, acredito que a melhor definição para Something Beautiful seja que o álbum é o seu Impossible Princess. Lançado em 1997 como o sexto álbum da carreira de Kylie Minogue, o trabalho, na época, foi recebido de maneira mista pela crítica e pelo público, devido à estranheza da experimentação sonora da australiana. Todavia, ao longo dos anos, a recepção mudou, mostrando o quanto esse ponto fora da curva foi glorioso e à frente de seu tempo. Acredito, sinceramente, que esse será o destino de Something Beautiful. Isso se consolida ao percebermos a qualidade da construção do álbum.
Sonoramente, o álbum não é apenas o mais aprofundado e amadurecido da carreira da Miley, mas, principalmente, o trabalho mais experimental de sua trajetória. Entretanto, não é um experimental vazio, como Miley Cyrus & Her Dead Petz, mas, sim, um trabalho com uma base realmente sólida e muito bem pensada, que resulta em uma construção refinada e finalização reluzente. É possível entender a crítica de que Something Beautiful é um trabalho conceitual sem um conceito bem definido, mas também é inegável que é possível perceber claramente tanto o destino pensado para o álbum quanto o caminho percorrido.
De maneira geral, o trabalho é um encontro sensacional de pop rock com art pop e fortes toques de eletrônico, mas que recebe injeções poderosas e inteligentes de outros gêneros e subgêneros, como progressive pop, soft rock, ambient pop, psicodelia, new wave, art rock, entre outros. Essa montanha de gêneros poderia facilmente resultar em um desastre monumental se não fosse a firme percepção de Miley sobre a própria masterização. Diferentemente de outros trabalhos, a cantora tem seu nome creditado como produtora em todas as canções. Isso faz com que o álbum tenha uma visão muito centrada e as pontas soltas bem aparadas, mesmo que não tenha contornos muito bem definidos como um trabalho conceitual. Na verdade, ao deixar isso de lado, Something Beautiful se mostra uma experiência cativante, envolvente, excitante, divertida, emocional e inspirada devido à construção realmente excepcional das ideias por trás.
Admito que um dos meus pré-julgamentos do álbum era que as primeiras canções, todas divulgadas como singles, seriam o ápice do trabalho, deixando a parte final recheada de canções que, no máximo, seriam bons fillers. Essa foi outra grande surpresa ao notar que o ápice de Something Beautiful acontece depois de seu começo, mesmo que as canções iniciais também estejam entre as melhores do álbum. Os momentos mais sensacionais ficam por conta de duas canções que, curiosamente, têm participações especiais: Walk of Fame e Every Girl You've Ever Loved.
Walk of Fame conta com a presença de Brittany Howard, mostrando como uma colaboração de luxo pode realmente funcionar. Entretanto, o grande destaque da faixa é sua impressionante produção, que a transforma em uma transcendente mistura de dance-pop, electro-dance e post-disco, capaz de prender totalmente a atenção de quem a escuta durante seus seis minutos de duração. Isso se deve ao escopo monumental da canção, que a torna épica, descomunal e completamente viciante. E, quando se pensa que Walk of Fame é o ápice do álbum e da carreira de Miley, surge outro momento de igual qualidade: Every Girl You've Ever Loved.
Caminhando no mesmo campo sonoro, mas com resultados distintos, Every Girl You've Ever Loved aposta em uma abordagem mais eletrônica, com toques de EDM, art pop, synth-pop, ballroom e vogue. A canção encapsula perfeitamente a influência queer na sonoridade de Miley, entregando um trabalho icônico, cativante, inesperado e com um alcance sonoro de tirar o fôlego. As camadas sonoras que a música adquire ao longo de sua duração até seu inesquecível clímax são inteligentes e maduras, além de servirem uma estética “cunty” em uma bandeja de ouro adornada com pedras preciosas. A cereja do mais puro rubi nessa produção é a presença genial de Naomi Campbell, cuja voz distinta declama versos icônicos e deliciosos que complementam perfeitamente a atmosfera de Every Girl You've Ever Loved. Apesar das participações especiais, a grande e maior estrela das canções é, sem dúvida, Miley.
Miley Cyrus não tem uma voz que se encaixa em qualquer canção, e, algumas vezes, isso ficou evidente em decisões sonoras equivocadas. Contudo, em Something Beautiful, a cantora encontra o ponto de equilíbrio ideal para que sua voz brilhe intensamente em todas as faixas. Sua performance vocal eleva o material, expondo seu timbre, sua versatilidade e seu alcance de maneira impecável. Um dos melhores momentos vocais é More to Lose que é "uma lindíssima, emocional e tocante balada indie pop/soft rock, na qual podemos ouvir com clareza o timbre de Miley. A parte inicial, quando a cantora entoa os primeiros versos, é verdadeiramente arrebatadora; sua performance contida e melancólica é impressionante e marcante". Já em Easy Lover, Miley entrega seu melhor momento como performer. Ela combina carisma e técnica para criar uma vibrante e marcante mistura de pop rock, funk pop e disco, que deveria ter sido o primeiro single do álbum.
Liricamente, o álbum não traz composições com grande profundidade temática, mas apresenta letras relativamente simples que equilibram de maneira brilhante a complexidade sonora das músicas, adicionando um toque mais pop. Isso não significa que sejam trabalhos menos refinados ou esteticamente menos caprichados. Pelo contrário, as letras revelam um lado mais pessoal e intimista da cantora, como em Golden Burning Sun, que fala sobre se entregar a um novo amor, reconhecendo os perigos e as alegrias. É uma composição simples, mas de beleza genuína e emoção real. Outros destaques do álbum incluem a ousada Something Beautiful "que começa como uma delicada e suave balada pop soul com toques de jazz e se transforma, no refrão, em um espinhoso e barulhento art/progressive rock, quebrando expectativas. Ela retorna à sonoridade calma do início nos versos seguintes, apenas para mudar novamente na parte final", Pretend You're God apresenta uma atmosfera sensual e densa e, por fim, End of the World se destaca como "o melhor single de Miley desde Midnight Sky. A faixa é uma deliciosa, madura e iluminada mistura de soft rock, pop rock, dream pop e synth-pop". Something Beautiful é uma obra de grande preciosidade, que certamente será redescoberta e reavaliada ao longo dos anos. Este álbum demonstra o quanto Miley Cyrus foi gigante nessa era de sua carreira.


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