Gaby Amarantos
Uma das maiores qualidades dos dois últimos álbuns da Beyoncé é a clara intenção de serem celebrações da música da comunidade negra estadunidense, fazendo influências, referências e legados que foram esquecidos e/ou apagados ganharem os devidos e merecidos holofotes. E é nesse caminho de celebração que Gaby Amarantos constrói o seu quarto álbum: o espetacular ROCK DOIDO. Entretanto, as comparações acabam aqui, pois Gaby cria um trabalho único, partindo do seu ponto de vista em um dos trabalhos nacionais mais impressionantes dos últimos anos.
Começo essa resenha com essa citação à Beyoncé, pois Gaby Amarantos já mencionou várias vezes a influência da cantora em sua carreira. E isso fica bem claro aqui, pois, assim como em Renaissance e, principalmente, em Cowboy Carter, Gaby transforma o álbum na celebração máxima da música que a construiu como artista e como pessoa. E essa celebração é da música brasileira, com ênfase pesadíssima nos gêneros musicais criados diretamente no Norte do Brasil. Entretanto, as comparações param por aqui, pois Gaby entrega em ROCK DOIDO um dos álbuns mais singulares e especiais que a nossa música brasileira viu em muito tempo. Não exatamente o melhor, mas, sem nenhuma dúvida, o mais ousado conceitualmente, em execução e em sonoridade.
O grande ponto do álbum — e o que o faz um verdadeiro unicórnio da música brasileira — é que ROCK DOIDO é um álbum conceitual que não só tem uma ideia brilhante, como também a executa de maneira brilhante. E, sinceramente, isso é algo tão raro de acontecer que já seria possível elogiar o álbum apenas por esse fato. E qual é esse conceito? É simples e nada surpreendente, pois segue uma visão fácil de identificar ao emoldurar com exatidão milimétrica a sensação de estarmos ouvindo exatamente uma setlist/mixtape feita por algum DJ que pegou várias canções de diversos artistas e montou essa coleção para tocar em uma festa nas ruas de uma cidade do interior do Norte do país. Essa é uma sensação muito específica, mas que faz completo sentido quando ouvimos o álbum e notamos que essa decisão vem diretamente das experiências da Gaby e de todas as pessoas que viveram ou vivem imersas nessa sonoridade. E um dos segredos para alcançar essa perfeição conceitual está em como o álbum é construído.
Com vinte e duas faixas que ficam em torno de um minuto até, no máximo, dois minutos e poucos (uma ou outra faixa passa dessa duração) e finalizando com cerca de trinta minutos, o álbum se estrutura como uma frenética, explosiva, eletrizante e imparável coleção de canções que vão surgindo uma atrás da outra em um ritmo descomunal, fazendo parecer que o álbum é apenas uma grande e contínua faixa separada por seções diferentes. E esse resultado é tão bem costurado que faz com que sejamos sugados para o vórtice desse furacão sonoro de maneira acachapante. Essa decisão poderia criar algum problema se não estivéssemos diante de uma produção competente em todos os sentidos.
Se você conhece um pouco da sonoridade da Gaby ou do Norte do Brasil sabe exatamente qual é a base de ROCK DOIDO, mas, para aqueles que têm dúvida, é necessário apontar que temos aqui a celebração máxima do tecnobrega saído diretamente das festas de aparelhagem da região. Todavia, o que faz o álbum ser não apenas essa celebração, mas também uma ousada, complexa e intrigante exploração sonora é a forma como ele vai sendo incrementado substancial e esteticamente por sonoridades diversas: do funk carioca, o carimbó, o brega tradicional, o eletrônico, gêneros latinos, o calypso, o sertanejo e o pop, criando uma das mais impressionantes sonoridades do pop nacional. Além disso, não são apenas introduções de gêneros: a produção adiciona samples, locuções, sons, texturas, nuances, quebras de expectativa e outros efeitos que ampliam o alcance da sonoridade e criam o fio condutor perfeito. Nas mãos de alguém menos qualificado e, principalmente, com menos conhecimento dos gêneros usados, o álbum poderia ser um desastre ou ficar mais no campo das ideias do que da realização. Felizmente, Gaby, que assina a produção ao lado de seus colaboradores, consegue a façanha de cumprir perfeitamente o idealizado ao entregar o conceito com perfeição.
Preciso dizer, porém, que o álbum funciona perfeitamente como um todo, pois algumas faixas não funcionam tão bem fora do contexto. Isso, no caso de ROCK DOIDO, não é um problema devido à sua construção geral requintada e certeira. E é preciso apontar que, para carregar tamanha força criativa, é necessário alguém com o porte e talento de Gaby, que faz do álbum uma verdadeira tour de force performática como poucas vezes somos capazes de presenciar. Sério, a cantora é uma força da natureza que está no mesmo nível da produção ao seu redor, entregando performance sensacional atrás de performance inspirada, seguida de outra impressionante, sabendo misturar explosão vocal, carisma, estilos e emoção genuína. Dá para ouvir toda a empolgação da cantora e todo o amor que ela tem pelo que está fazendo. E isso é realmente impressionante e tocante.
Como dito anteriormente, o álbum funciona como um todo devido ao seu conceito, sendo necessário experimentá-lo em toda a sua magnitude. Entretanto, quero citar algumas peças centrais que se tornam a base do álbum: o perfeito abre-alas Essa Noite Eu Vou Pro Rock, que nos faz começar a entender o resto do álbum; a romântica e estilizada Te Amo Fudido, com a presença de Viviane Batidão; o sensacional uso do sample de Somebody That I Used to Know em Foquinho; o carimbó de Crina Negra; a genial Bonito Feio e, por fim, a viciante e empolgante Tumbalatum, com a participação da Gang do Eletro.
Em ROCK DOIDO, Gaby Amarantos comprova que é possível usar a nossa música de uma forma que ela seja elevada a parâmetros de grandiosidade e estética ligados a grandes nomes do pop mundial, sem perder literalmente nada da tradição e da essência do Brasil.


Um comentário:
Eu não canso de escutar esse álbum desde o seu lançamento. Impressionante demais o que a Gaby faz não só aqui, mas como também no filme que o acompanha.
Indico ouvirem a entrevista que ela deu no podcast Mano a Mano, do Mano Brown, onde ela explica melhor as inspirações e referências que a guiaram a criar a obra. Ótima crítica!
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