7 de agosto de 2022

Primeira Impressão

RENAISSANCE
Beyoncé



Sempre tenho um processo de construção das minhas que começa com, claro, escutar o álbum para depois digerir o mesmo enquanto penso sobre qual caminho quero tomar para escrever as minhas percepções sobre o que achei do mesmo. Depois de um tempo, o próximo passo é o ato de escrever, tentando expor em palavras tudo o que concluir após o período de reflexão. Obviamente, isso não mudou com a minha analise de Renaissance da Beyoncé, mas tropecei em um grande problema: tenho muito o que falar. Por isso, espero que sinceramente que essa resenha possa dar conta de expressar todo os meus sentimentos e reflexões sobre o monumental sétimo álbum da carreira da Queen Bey.

Não há como duvidar que a Beyoncé é a maior artista da atualidade e que já conquistou o seu lugar definitivo no panteão dos mais importantes de todos os tempos em lugar de imenso destaque. É por isso que comparações com o Michael Jackson são feitas em vários textos e resenhas sobre a cantora, mas, sinceramente, devo admitir que Bey leva uma imensa vantagem sobre o rei do pop. Enquanto MJ foi atingido por dezenas de polemicas pessoais que mancharam a sua carreira e fizeram claramente o cantor diminuir o seu ritmo criativo como mostra o mediano Invincible em 2001 que terminou sendo o seu último álbum antes da sua morte, Beyoncé tem uma proteção relativamente forte da sua vida pessoal e vem construído um discografia muito mais prolifera ao longos dos anos. E é por isso que o lançamento de Renaissance marca mais uma pedra fundamental para a carreira da Beyoncé.

Dentro da sua discografia é necessário entender onde que o mesmo se encaixa na narrativa da carreira da cantora. Dangerously in Love foi a apresentação da cantora como um projeto solo marcante, mas ainda completamente disperso sonoramente e artisticamente. B’Day mostrou o potencial da artista com um álbum extremamente interessante e criativo que fez a cantora perder certo valor comercial. Característica essa que foi retomada de força esplendorosa nos altos e baixos de I Am... Sasha Fierce. Em 4, a cantora voltou seus olhos para o passado para começar a escrever seu futuro em um trabalho que marcou a sua liberdade criativa e que hoje é sem nenhuma dúvida um álbum de transição. Tudo isso culminou no blockbuster Beyoncé em que a artista finalmente se mostrou por completa. E, por fim, surge o devastador Lemonade em que podemos ver toda força da natureza estética e emocional em um marco cultural. Renaissance, começo de um projeto em três partes, é a como se fosse a celebração de toda a construção feita anteriormente pela cantora ligando todos os pontos de forma épica e magistral e, finalmente, dando a diva pop que muitos achavam que era a Beyoncé.

Ao contrario de qualquer afirmação, Bey nunca foi exatamente uma artista pop, mas, sim, uma artista vinda do R&B com influencias diversas como, por exemplo, gospel e country que pincelava seus trabalhos como pop para vender comercialmente e fazer muitos acharam que a mesma era pop. E essa foi uma decisão importante para a carreira da cantora, pois desde o começo foi percebido que caso a cantora fosse totalmente pop não teria o sucesso e longevidade que a mesma alcançou. Adicionando toques pop aqui e ali ao longo dos álbuns, a Beyoncé foi capaz de construir a sua sonoridade da maneira que pudesse realmente expressar a sua identidade como a que conhecemos. Isso foi decisivo já que ser apenas pop pode fazer sucesso durante um tempo, mas não dá muito espaço para construir um legado realmente substancia. Todos grandes astros pop tiveram que algum momento experimentar com outros gêneros para atingirem um outro patamar na carreira. Em Renaissance, a cantora mergulha no pop, mas, queridos leitores, não é exatamente o pop que podemos pensar sobre o que faz uma diva pop.

Contexto. Essa é a palavra para entender qual é o pop que a Beyoncé explora no seu novo álbum. Desde que fez a sua transição artística, a cantora vem explorando gêneros, sons, estilos e estéticas que fizerem a história vindo diretamente de artistas negros. Apesar de sempre presente na discografia da cantora, essa vontade e concretização vem de forma mais nítida desde o lançamento do 4. Como dito anteriormente, o álbum buscou clara influência do R&B e soul dos anos setenta e oitenta para construir a sonoridade básica do projeto. Em Beyoncé, apesar de uma jukebox, a tendência de referenciar uma quantidade de gêneros continua bem clara, mas foi em LemonadeThe Lion King: The Gift e Everything Is Love ao lado do Jay-Z que tudo isso tomou forma de maneira incontestável. Existe até um sketch do famoso Saturday Night Live intitulado "The Day Beyoncé Turned Black" logo após o lançamento de Formation que tira sarro com essa percepção de pessoas brancas sobre a sonoridade da cantora atual. Enquanto os outros trabalhos tinham um tom profundo de reverencia solene, Renaissance continua essa exploração da Beyoncé das suas raízes em que cantora quer apenas celebrar tudo a negritude. E os sinônimos dessa celebração são diversão, curtição, festejar e simplesmente se divertir. E não apenas da comunidade negra como também da comunidade queer.

Renaissance é, resumidamente, um trabalho pop/dance/R&B que vai transitando por uma coleção imensa e profunda de subgêneros, especialmente relacionados a house music. E, querido leitores, quando falo sobre imensa e profunda é necessário ressaltar que é o leque de gêneros, estilos, subgêneros e influencias são algo abismal no quesito de quantidade. Ouvir o álbum é quase como ouvir a coletânea de um artista multifacetado e de uma importância única para o pop que tem algumas décadas de carreira e que reúne basicamente toda a sua imensa história em apenas um álbum. E a Bey fez isso em apenas um álbum de inéditas. Mais do que saber sobre quais os gêneros são usados, o importante é saber de quem a cantora se inspira. Novamente, o álbum é uma celebração da música negra, especialmente aquela que deu base para o pop/eletrônico de forma geral. Nascidos, criados e elevados a referencias culturais em discotecas/boates/clubs que eram de pessoas negras e frequentados pela mesma comunidade durante os anos setenta, oitenta e noventa e que foram apropriados e assimilados pela cultura pop mainstream aos longos dos anos, os gêneros/subgêneros remetem aos originadores desses movimentos e com um destaque imenso para a cultura queer. Quem já assistiu ou assiste shows como RuPaul’s Drag Race ou, especialmente, Legendary, sabe que existe toda uma cultura associada a comunidade LGBTQIA+ que teve que criar a sua própria cena musical para pode se divertir, dançar e, claro, pode representar a si mesmo. E a principal cultura que a Beyoncé se inspira na sonoridade do ball cuture, especialmente a ouvida nos históricos ballrooms em que são eventos em que a comunidade queer construir para ter um lugar de divertimento e visibilidade nos anos sessentas e teve seu auge nos anos oitenta e começo dos noventa. A série Pose tem como cenários exatamente essa cultura. Sonoramente, Bey se influencia exatamente desse cenário com canções que são claramente para fazer o “vogue”. Além disso, a produção também volta os olhos para a disco e a afrobeats, fechando o pacote de influências negras de forma espetacular. Tudo isso poderia desabar devido ao peso de tudo que é colocado, mas, queridos leitores, estamos falando de dona Beyoncé Giselle Knowles-Carter.

Nas mãos de uma artista com um décimo do talento da Beyoncé e, também, a equipe criativa que a cerca, toda a ideia por trás do álbum poderia desabar de maneira colossal em um mar de batidas massificadas, pretensiosidade e falta de direção nuclear. Felizmente, a cantora tem uma visão extremamente clara e coerente sobre qual a intensão e, principalmente, onde que o resultado quer chegar. Com cerca de mais de uma hora de duração e dezesseis faixas, Renaissance é o trabalho mais fluido e coeso da carreira da cantora em que existe um fio nítido de transição em todas as faixas, criando uma teia esplendorosa de conversação entre todas as canções. Mesmo longo, o álbum é facilmente apreciado de uma vez só e na repetição, pois a produção cria canções que apresentam um fator de “quero mais” gigantescas. Apesar de ser genial do começo ao fim, o álbum encontra a glória definitiva no seu fechamento. Reservado normalmente para canções baladas/românticas nos trabalhos da Beyoncé, o final do Renaissance é o melhor final da carreira da cantora e, também, um dos melhores momentos da história do pop sem nenhuma dúvida. Começa pela impecável Pure/Honey.

Dividida em duas partes, a faixa é uma eletrizante e suculenta mistura de vogue/club/house em Pure para se transformar de maneira orgânica em uma deliciosa e cativante disco/soul em Honey que ajuda a canção a chegar na estratosfera. E quando a gente pensa que o álbum não tem como ficar melhor aparece a genial SUMMER RENAISSANCE. A faixa é o perfeito fechamento para o álbum ao ser a celebração máxima de tudo que a cantora construiu ao longo de todo o álbum ao ser a mistura perfeita de house, disco, ballroom e dance pop devido a belíssima execução impecável e a genial utilização do sample do clássico I Feel You da Donna Summer de 1977. E essa escolha é duplamente importante e simbólica, pois a canção é considerada uma das percussoras da música eletrônica e remete a um dos primeiros hits da carreira da própria Beyoncé em Naughty Girl que tem o sample de Love to Love You Baby também da Donna Summer. Esse uso de sample que esteve presente na discografia da cantora desde Crazy in Love (Are You My Woman (Tell Me So) de 1970) encontra outro nível em Renaissance.

Pratica comum dentro da música, especialmente no R&B/pop/hip hop, o uso de outra canção para a construção é algo que feito de maneira correta vem apenas acrescentar qualidade para o resultado final. Na produção de Renaissance, a técnica dá um passo a mais a ser parte fundamental da construção da sua simbologia. Escolhendo principalmente canções que fazem parte da história da cultura house/ballroom, mas expandido para gêneros como o gospel e o bounce, a produção dá para o álbum a base perfeita para poder erguer toda essa sonoridade de maneira que soa perfeitamente alinhada aos “originadores” sem soar como uma cópia e, ao mesmo tempo, prestar uma homenagem louvável para todo uma cultura de nomes que nem sempre são reconhecidos. Um dos ápices do uso do sample é o single Break My Soul “uma deliciosa house/dance com toque de R&B e hip hop que consegue derivar especificamente da era mencionada sem soar datada, adicionando um espetacular verniz moderno e radiante. A produção acerta em cada ponto sonoro, indo desde a construção instrumental, a atmosfera dançante e, principalmente, o uso dos samples que ressaltam bem as influencias. De um lado, a presença clara dos vocais da lendária rapper e pioneira do bounce Big Freedia retirados da sua canção Explode de 2014. Do outro, o contido, mas enriquecedor, uso do sample do clássico Show Me Love da Robin S. Na verdade, ao escutar pela primeira vez associei a canção diretamente com o sucesso de 1993 sem nem saber do uso do sample. O resultado é um trabalho radiante, viciante e com uma energia refrescante, especialmente quando a gente lembra que é a Beyoncé fazendo novamente pop”. E enquanto escrevo essa resenha, a cantora adiciona outra camada de significação ao lançar um remix com o sample de Vogue da Madonna em que a rainha do pop é creditada como featuring. Outro ponto de destaque é a decisão de utilizar o mesmo samples em canções diferentes para criar essa sensação de fluidez entre as faixas. O melhor momento é o uso do já icônico sample de Unique para a base de Cozy para depois continuar em Alien Superstar. Apesar disso, ambas canções são diferentes nas suas essências e também no uso de outros samples. De um lado, a deliciosa introdução do dialogo da atriz e ativista LGBTQIA+ Ts Madison em Cozy. Do outro, Alien Superstar faz o uso definitivo de I'm Too Sexy do Right Said Fred. Nem mesmo a polemica envolvendo o uso de Milkshake na faixa intro Energy tira o brilho e inteligência das escolhas feitas para Renaissance. Ainda mais que a Beyoncé continua no auge da sua capacidade vocal e carisma impressionante.

Para segurar um álbum com esse escopo tão profundo de gêneros é necessário uma artista cm a capacidade com a da Beyoncé em potencial, versatilidade e carisma. E isso é porque até o momento não ouvimos a mesma ao vivo, mas só o que é apresentado aqui dá para perceber toda a magnitude e espetáculo que deve ser as apresentações das faixas em shows futuros. O seu melhor momento é carregar de maneira descomunal a brilhante Virgo's Groove. Ao entregar uma soul/disco atemporal, Bey entrega uma performance suculenta, sensual, divertida, leve, deliciosa, envolvente, carismática e com uma montanha russa técnica simplesmente impressionante. Logo em seguida, a cantora volta para as raízes africanas com a marcante e inesperada dance-pop/afrobeat Move com uma performance distinta e energética. Entretanto, o ponto alto da canção é a química entre a cantora coma presença da lenda Grace Jones que quase rouba a canção para si. Uma pena que a promissora Tems tenha menos espaço para brilhar ao lado de duas forças da natureza. Outros momentos que preciso comentar é a graciosa dance-pop/soul Cuff It, o abre alas marcante de I'm That Girl, a viciante Church Girl que mostra um pouco do relacionamento da comunidade negra com a dualidade entre a religião e a os prazeres do mundo e, por fim, a sexy e envolvente Plastic off the Sofa. O escopo de Renaissance é tão grande que no decorrer de uma semana do seu lançamento e enquanto escrevo essa resenha foi ganhando novas camadas de importância dentro e fora do contexto do álbum que apenas comprava a genialidade do trabalho, sendo o primeiro ato de uma trilogia. Então, a Beyoncé está se preparando para o que deve ser uma das maiores e melhores eras da história da música. E que honra é viver nessa época em temos uma artista dessa grandeza.


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