29 de março de 2020

Primeira Impressão

Miss Anthropocene
Grimes


Nem sempre um álbum tem na sua aclamação pela crítica ou/e pelo público o seu grande mérito. Ás vezes, o fato de um álbum gerar um "racha" entre quem gosta e quem não gosta se transforma na sua carta na manga para conseguir o seu lugar entre os grandes momentos da música. Recentemente, o último álbum a entrar nessa galeria é o quinto trabalho da canadense Grimes, o imperfeitamente espetacular Miss Anthropocene.

Além de ser uma figura polêmica por si, principalmente depois de começar um relacionamento com o empresário bilionário Elon Musk, Grimes entrega em Miss Anthropocene um álbum que facilmente dividi opiniões desde a sua base até a sua finalização. O primeiro motivo é o fato do álbum ser denominado como conceitual. Segundo a cantora, o álbum é uma referência uma deusa grega com um neologismo criado por Paul J. Crutzen para designar a deusa moderna da mudança climática. Já aqui dá para perceber a pretensiosidade que Grimes dá para o trabalho. Isso é ruim? Não exatamente. O grande problema é que após ouvir o álbum não percebi nada que pudesse ligar o resultado final com esse conceito. Apenas uma faixa que pode ter alguma coisa implícita, mas mesmo assim o fio de raciocínio é igual a grossura de um fio de cabelo. Então, esse conceito é mais papo do que realmente uma coisa concreta. O contraponto, porém, é que a produção consegue criar um trabalho de uma força tão épica que esse problema é colocado embaixo de uma pedra de uma tonelada.

Definir qual é a sonoridade de Miss Anthropocene é uma tarefa ingrata, pois a produção cria um hibrido de vários gêneros em uma grande e compacta salada mista que vai desde o folk até o k-pop. Acredito que a melhor definição que cabe aqui é uma mistura de avant pop/industrial e influências de indie rock já que existe uma queda maior para esses gêneros ao longo de todas as faixas. E mesmo assim não é possível definir com exatidão a profundidade de sons, texturas e batidas que o álbum é enxertado com uma excepcional qualidade. Ouvir todo o álbum é como entrar em um turbilhão a duzentos por hora que deixa quem ouve até meio atordoado logo no seu começo arrebatador. Fazia algum tempo que um álbum não tinha esse impacto tão pungente em mim. 

Em apenas três faixas com cerca de treze minutos total, Miss Anthropocene já mostra para o que veio de forma genial, começando pela sombria So Heavy I Fell Through the Earth (Art Mix). Uma deslumbrante mistura de electropop com industrial para criar quase como um portal em direção para outro mundo. Logo em seguida, Grimes nos direciona com mão forte com a pesada e esquisita Darkseid que conecta o industrial e a sua batida soturna com o k-pop com a participação de 潘PAN, entregando um rap poético e apocalíptico. Finalizando esse começo está a quebra de expectativa Delete Forever, uma delicada e melódica folk pop que vem como uma inusitada e surpreendente banho gelado no calor de quarenta graus. Mesmo não mantendo exatamente essa mesma toada, o resto do álbum continua em qualidade altíssima ao desbravar outros caminhos. Caminhos esses que podem ter a personalidade única vinda da Grimes, mas que ao prestar bem atenção é possível notar que não tem nada de novo sob o sol.

O segundo fato de fazer Miss Anthropocene tão polêmico é que, apesar de querer soar como a última bolacha do pacote, a sonoridade aqui não tem nada de inovador. Na verdade, quem já andou nessas praias sabe que a sonoridade aqui já foi criada, renovada e recriada várias e várias vezes por uma centenas de artistas tão bons ou melhores que a Grimes (um beijo para a Björk!). Então, queridos leitores, não caia na armadilha de achar que estão diante da nova revolução do pop. Dito isso, Miss Anthropocene é, sim, um álbum espetacularmente poderoso, tecnicamente perfeito e dono de uma fluidez impecável.  Apesar de haver vários momentos em que bate aquela sensação de "já ter ouvido isso antes" é impossível não cair o queixo em vários outros momentos. E esses momentos são quando a produção decide explorar a diferença entre o experimental e o tradicional. 

Durante todo o álbum, a produção vai transitando entre canções com uma pegada tradicional e outras que foram criadas para experimentarem com as possibilidades. Claro, nada novo é apresentado, mas é feito de forma tão inteligente que fica difícil não se deixar envolver. Por exemplo, a indie rock/industrial/grunge My Name Is Dark (Art Mix) que parece caminhar em um lado mais experimental dentro de toda a sua estranheza. Enquanto isso, You'll Miss Me When I'm Not Around soa como uma electropop com alguns toques de ousadia que parece querer provocar o electropop comercial.

Finalmente, o terceiro motivo da polêmica é a atmosfera que o álbum apresenta: sombria, pessoal e, por incrível que pareça, datada. Pode soar quase inacreditável, mas ao analisar bem as letras simples e íntimas que Grimes e alguns colaboradores escreveram, a cantora se mostra uma artista que parece querer soar descolada a todo o custo, mas que repete cacoetes e alguns lugares comuns que foram explorados por vários artistas. Isso é problema? Não no momento que tudo isso é construído de forma inteligente e tecnicamente perfeita. Além disso, a áurea sombria industrial que Miss Anthropocene é submetido consegue ser o ponto de equilibro ao refinar e dar personalidade mais bem definida para o trabalho. Existe um problema, porém, que não exite nenhuma saída para conseguir defender: o seu final. Ao invés de terminar com a sensacional We Appreciate Power (colocada apenas na versão deluxe), o álbum termina com a equivocada e completamente fora do tom Idoru que, com o seu mais de sete minutos, apresenta momentos realmente irritantes e dispensáveis. Esse grande tropeço não causa quase nenhum dano muito irreparável, mas é responsável por tirar algum brilho do resultado final. E, provavelmente, essa característica de Miss Anthropocene de poder ser tanto genial como um desastre é que o faz um trabalho de imparidade única como há tempos a indústria fonográfica não tinha. 


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