11 de junho de 2020

Primeira Impressão

græ
Moses Sumney


Para fazer essa semana especial com apenas artistas negros precisei fazer uma curadoria de músicas e álbuns que estavam na minha fila para ganhar uma resenha. E um desses artistas era o cantor Moses Sumney que até o momento não tinha sido apresentado para a sua música. De forma despretensiosa e sem muitas expectativas, apesar das ótimas críticas que o recebeu, comecei a escutar o seu segundo álbum græ. Depois de uma hora e pouco de duração e vinte faixas posso dizer com propriedade que vivenciei uma verdadeira experiência quase transcendental. E, queridos leitores, não pensei que isso aconteceria duas vezes em um mesmo ano.

Não tem nem um mês completado direito que foi desafiado pela magnitude Fetch The Bolt Cutters da Fiona Apple e tive uma verdadeira batalha para escrever a resenha devido ao fato do álbum ser uma "quebra de barreiras ao entregar uma revolução sonora que parece ser inexplicável". Então, para minha genuína surpresa experiencio outro álbum com a mesma força e poder. Dessa vez, porém, o resultado de græ tem uma qualidade estética muito mais plausível que o trabalho da Fiona, principalmente devido ao fato do público perceber com alguma facilidade maior algumas das influências que Moses Sumney carrega na sua sonoridade e, principalmente, na sua gigantesca voz. 

Chegando ao seu segundo álbum, o estadunidense Moses Sumney já tinha deixado uma marca no seu álbum debut chamado Aromanticism de 2017. Entretanto, græ parece fixar o cantor com um grande expoente da música ao entregar um intrigado, longo, complicado, sublime e complexo trabalho que mistura jazz, blues, experimental, rock, pop, soul e indie que consegue manter a mesma qualidade durante toda a sua longa duração. Para tentar guiar a sua imagem sonora é preciso pensar que Moses Sumney seja uma versão do Frank Ocean ainda mais experimental. Claro, os dois apresentam diferenças artísticas imensas no quadro geral, mas ao ouvir græ com essa comparação que me ajudou a dar sentido para o que estava ouvindo. Atmosférico do começo ao fim, mesmo com a mudança drástica entre as duas partes, o álbum é como aquele chiclete em tira muito popular na década passada que quanto mais a gente "degusta" vai mudando de sabor, ou seja, quanto mais adentramos no álbum mais vamos experimentando uma imensa quantidade de texturas, sabores, nuances, explosões sonoras, batidas e quebras de expectativas. E, meus amados leitores, tudo isso já acontece já nas primeiras faixas do álbum.

græ já começa com uma verdadeira porrada com a impressionante Cut Me em uma falsamente minimalista e espetacular blues/indie/jazz experimental que brinca com as nossas sensações em um verdadeiro desfiladeiro de emoções em que ficamos na sua beirada esperando para sermos jogados no sombrio além. Sério, ouvir a faixa é uma experiência única para logo depois sermos jogados em uma outra experiência devastadora em In Bloom que surge com uma vintage standart jazz com um verniz moderno e levemente experimental sobre uma amizade problemática. Em apenas sete minutos e pouco, Moses não só apresenta o álbum, mas, também, nos leva em uma viagem extraordinária que ainda não consegue exprimir com clareza como será o resto do álbum. E, mesmo que as faixas seguintes não tenham o mesmo impacto que as que iniciam a jornada, græ vai se desdobrando em uma verdadeira orgia instrumental em que cada parte é realmente importante, edificadora e poderosa. O álbum continua com a indie rock/grunge Virile para desaguar na pesada jazz fusion/rock/punk Conveyor dona de um dos versos mais impactantes do álbum: 

The fire ants die for a chance
At the queen
The carpenter bee dies when he finally
Leaves a sting
To be a vein runnin' through your vain body
I will step on a belt, put my life on a shelf
One of many

Outros momentos de destaque durante a primeira parte de græ fica por conta da jazz experimental Colouour e sua belíssima introdução instrumental, a estranha e psicodélica Gagarin e, por fim, a elegante Neither/Nor e os seus leves toques latinos. Mesmo com toda a grandiosidade que a produção que conta a participação de diversos nomes do nicho jazz/experimental, a principal razão para que o álbum seja tão impactante é a voz lendária de Moses Sumney.

Desde a primeira nota na primeira canção, Moses se mostra como um cantor realmente avassalador, versátil e de uma força que desumana. Sinceramente, as performances de cair o queixo em cada canção é como ouvir a união de várias influências em apenas uma voz. Misturando D'Angelo com Ella Fitzgerald, doses cavalares de Price e alguma coisa de Björk e Kate Bush, Moses encontra a sua própria voz em performances que expressam uma centenas de sentimentos e sensações dos mais variados graus de intensidade, indo do mais terno ao mais raivosa com o mesmo domínio impecável. E isso não é perto de explicar com propriedade exata a extensão da qualidade da voz de Moses com agudos e falsetes impressionantes. E mesmo que a primeira parte do álbum transmita tudo isso com propriedade é na segunda parte que podemos contemplar em toda a sua graça a voz do artista devido a característica da sonoridade que ganha novos contornos.


Ao contrário da primeira parte, a segunda tem uma atmosfera melancólica e uma pegada menos experimental e bem mais atmosférica ao seguir um caminho indie R&B/pop. E, por isso, a voz de Moses é ainda melhor exposta, mas não acredite que existe qualquer perda de qualidade. Na verdade, a segunda parte é ainda mais profunda com uma tristeza quase palpável em que o artista discorre sobre sentimentos existências e reflexões sobre o amor, o tempo e a finidade da vida. Os grandes momentos da segunda parte ficam por conta da experiência divina e arrebatadora de ouvir Bystanders que começa com uma simples e minimalista balada R&B para acabar com uma power indie R&B com influência eletrônica e a delicadeza sombria e pesada de Me in 20 Years. græ é álbum tão impressionante que até mesmo as canções menores são impactantes e memoráveis como é o caso da crônica triste sobre as memórias de uma criança e o seu primeiro encontro com a morte em Two Dogs, a pureza genuína sonora de Keeps Me Alive e a sensualidade trágica de Bless Me. Reunindo nomes de renome e talentosos para ajudarem a construir græ como uma galaxia de sons ao fundir o passado com o presente e o futuro, Moses Sumney consegue criar em græ uma pequena grande revolução em um ano que parecia impossível de acontecer duas vezes.

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