George Michael
Normalmente quando se pergunta quais são as grandes estrelas da música dos anos oitenta/noventa sempre vem a mente nomes como, por exemplo, Michael Jackson, Madonna, Prince, Mariah Carey e Whitney Houston são provavelmente os primeiros que surgiram na sua memória ao ler a primeira parte dessa frase. E isso não é nenhum problema, pois realmente esses foram a nata do mainstream dessa época. Entretanto, a gente parece esquecer de alguns nomes que fizeram tanta história como os citados, mas que o tempo não foi tão “bondoso” na memória afetiva do público. E é esse nome que irei falar sobre ao resenhar o álbum de estreia do lendário George Michael: o avassalador Faith. Antes de entrar na resenha do álbum é necessário dar um contexto sobre quem era o cantor na época do lançamento do álbum e o motivo de minha impressão sobre o não reconhecimento da figura do mesmo como um dos maiores nomes do pop.
Quando lançou o seu primeiro álbum solo, George Michael já era uma ídolo pop consolidado devido ao tempo sendo a um dos lados do duo Wham!. Ao lado do músico Andrew Ridgeley, George tinha não só conquistado a Inglaterra, mas o mundo inteiro com o mega sucesso de Wake Me Up Before You Go-Go em 1984. O que poucos sabem ou se dão conta é que o cantor não era apenas um integrante do duo e, sim, a mente artística por trás do mesmo. Ao olhar os três álbuns lançados do Wham! se nota que o artista era o principal compositor e produtor de quase todas as canções. No segundo álbum e o de maior sucesso do duo, Make It Big, George assume o controle por completo da produção. Além disso, o artista se tornou um símbolo sexual da época, mas com uma figura completamente diferente daquela que iria se mostrar na carreira solo. Com uma aparência de “menino comportado” com seus ternos tipicamente dos anos oitenta e as canções romântica/fofas liricamente. Todavia, essa áurea de bom moço seria completamente mudada com o lançamento de Faith ao ter o seu visual alterado para roupas apertadas, especialmente as calças jeans, jaquetas de couro, cabelo curto e uma barba bem feita. A mudança drástica é possível ser vista musicalmente entre o último grande lançamento do Wham! com o primeiro single realmente solo.
Apesar de ser solista em Careless Whisper, indicando o começo da carreira solo, George Michael ainda era o bom moço entoando uma balada romântica sobre coração quebrado com toques sensuais na medida certa. Em Faith, canção que dá nome ao álbum, George já aparece como o roqueiro popstar de imagem marcante e sem nenhum medo de exalar sua sexualidade ao limite do bom gosto. Obviamente, a mudança foi drástica, mas o artista conseguiu manter o seu público e alcançar um ainda maior, especialmente mundial. Com cerca de vinte e cinco milhões de cópias, Faith cimentou o cantor entre o panteão dos maiores da música mundial, levou o Grammy de Album of the Year com apenas uma outra indicação na premiação de 1989 (Best Pop Vocal Performance – Male para Father Figure) e marcou toda a geração final dos anos oitenta/começo dos noventa. Então, qual o motivo de George não ser tão reconhecido como contemporâneos? Na minha visão, existem algumas razões para isso.
Apesar de ter vendido mais de cem milhões de cópias ao longo da carreira, oitenta apenas na carreira solo, George lançou apenas cinco álbuns solos entre 1987 até 2004. Além disso, o cantor sempre manteve por muito tempo a sua vida privada de forma discreta, apesar de rumores sobre a sua sexualidade. E sejamos sinceros: o começo dos anos noventa viram nomes importante fazendo muito mais polêmicas, ajudando a pavimentar suas figuras perante o status quo do pop a ferro e fogo. Entretanto, isso mudou em 1998 quando o cantor foi preso por "atos obscenos" com outro homem em um banheiro público. Se alguém não sabe, George Michael era gay, inclusive namorou o brasileiro Anselmo Feleppa durante os anos noventa que, infelizmente, faleceu de complicações do HIV em 1993. Entretanto, durante muitos anos, a condição sexual foi escondida da mídia e do grande público através dessa discrição e namoros de fachadas com mulheres. Quando estourou o escândalo aliado com os problemas com drogas ajudaram a criar uma verdadeira tempestade perfeita na vida e carreira de George Michael. E, sejamos bem sinceros, sempre foi muito mais fácil “escapar” do julgamento do público/mídia quando não se é um símbolo sexual gay que foi “desmascarado” de forma humilhante. Na verdade, apesar da grande evolução nos últimos anos, o momento e a maneira que a sexualidade do cantor foi exposta “manchou” a percepção de muito em relação a sua figura. Obviamente, isso não deveria ser nem pensando em algo que poderia atrapalhar a carreira de qualquer pessoa, mas estamos falando de uma época que, mesmo sendo apenas duas décadas atrás, ainda era uma situação extremamente complicada. Além desses todos fatores, George Michael não teve exatamente uma sonoridade na carreira solo que pudesse ser considerada de fácil assimilação, mesmo entregando momentos icônicos. E é por isso que Faith é um trabalho tão genial.
Lançado em final de Outubro de 1987 depois de um difícil processo de criação, Faith foi produzido e escrito completamente apenas por George Michael, tirando uma parceria na composição de Look at Your Hands. Além disso, o artista ainda tocou diversos instrumentos durante todo o álbum e, obviamente, também foi responsável por toda sua estética. É por aqui que começa a diferença entre o trabalho do britânico com boa parte do mainstream daquela época. Apesar de grandes nomes que estavam no topo de suas carreiras, George tinha a dualidade quase única que ser considerado um ídolo pop e, ao mesmo tempo, ter uma fortíssima visão e liberdade de criar exatamente o que queria. Faith não apenas mudou a estética do cantor, mas também adicionou uma nova personalidade sonora. Longe do lado romântico, brega e classicamente oitentista do Wham!, a carreira solo de George é marcada pela transição do popstar para uma fusão de roqueiro pop megastar. E, obviamente, isso é refletido em Faith ao ser construído como trabalho de pop rock que incorpora elementos de funk, R&B, soul, blue-eyed soul, synthpop e indie rock. Um caldeirão grandioso, complexo e extravagante que caminha na mesma direção de algumas tendências ouvidas no final dos anos oitenta, mas, também, adiciona uma dose de originalidade. Acontece que, infelizmente, quando a gente se refere a sonoridade dessa década é comum pensar em sintetizadores ao máximo, dance-pop raiz e canções de fácil digestão. Enquanto em Faith existe canções icônicas que, porém, apresentam camadas de nuances e significação que não se tornam tão impactantes em um primeiro momento. Quem consegue ir um pouco mais profundo irá notar uma verdadeira cápsula do tempo sonora pronta para ser apreciada como um bom vinho.
O álbum abre com a canção título: Faith é uma deliciosamente cadencia mistura de pop com rock que deveria ser o modelo para aqueles que querem fazer algo parecido. Sabendo muito bem usar a suas referências clássicas com o toque de ousadia pessoal ao introduzir elementos de gospel (o órgão instrumental como introdução) e a batida rock vintage (inspiração vinda da batida criada por Bo Diddley), George Michael consegue criar uma canção de fácil comercialização para a década de oitenta, mas que parece envelhecer de forma única ao soar, simultaneamente, datada e original. E isso não é problema, pois existe um verniz que protege a canção de maiores danos que o tempo pode causar. Depois dessa viagem ao passado sem sair do momento em que se encontrava, o artista segue o álbum com poderosíssima Father Figure. Uma power balada rock, a canção parece seguir uma cartilha sobre como fazer uma balada oitentista de forma clássica até que a gente percebe a imensa sexualidade que o cantor coloca não apenas na sua performance, mas, também, na maneira que constrói toda a instrumentalização. E essa sexualidade explode com a grandiosa I Want Your Sex (Parts 1 & 2).
Com mais de nove minutos e dividida em duas partes, I Want Your Sex é confirmação do estabelecimento do artista como símbolo sexual que não tem medo de falar sobre sexo. Misturando dance-pop com funk e uma camada vinda diretamente da cartilha do Prince, a canção é voluptuosa, explosiva, dançante, envolvente e polêmica na media certa. Lançada durante o auge da pandemia de HIV, a canção que fala abertamente sobre sexo e desejo foi considerada como negativa, pois poderia influenciar as pessoas a terem relações sexuais desprotegidas. E uma curiosidade: apesar de ser um dos maiores sucessos da carreira do artista, George nunca performou a canção por achar parecida demais com a sonoridade do já citado Prince, mesmo gostando da segunda parte. Uma pena de verdade, pois I Want Your Sex é o tipo de canção maior que qualquer tipo de especulação que possa a mesma estar envolvida. Para compensar toda a “quentura” da faixa surge a delicada e significativa One More Try.
É necessário entender o que irei escrever sobre essa balada melancólica que mistura soft rock com soul é de natureza da minha percepção e, não, um fato consumado. Em One More Try, o cantor narra sobre um jovem que deixa claro todo o seu medo em se relacionar com alguém, pois já sofreu muito anteriormente. Apesar desse claro significado é possível também entender que George tem medo de se relacionar devido ao medo que tem de se deixar envolver por sentimentos complicado e que poderão ser expostos de forma impiedosa, remetendo claramente ao fato de durante muito tempo o cantor lutou contra a percepção da sua sexualidade. É claro que esse contexto é lido através das entrelinhas em One More Try, mas existe outro motivo para perceber que George Michael já dava “dicas” sobre a sua verdade: poucas vezes o cantor usa palavras como girl ou woman para se referir ao seu par romântico ou/e destinatário das letras. Na própria canção One More Try é usado termos como angels, stranger e, a mais famosa, teacher que na gramatica da língua inglesa não se distinguem por masculino ou feminino. Com essas “dicas” sutis, Faith mostra que é bem mais complexo que o imaginário o se abrir em camadas de significação que precisão de cuidado e conhecimento para serem descobertas. O álbum continua não com a mesma força da primeira parte, mas ainda existem ótimos momentos e, principalmente, a importância do artista como performance.
Hard Day poderia cair no completo esquecimento por ser o único single que não fez sucesso, mas a capacidade de criar camadas de George Michael é impressionante. Um dos desses toques de genial é o último verso dessa funk/dance-pop em que o cantor usando um efeito vocal altera a própria voz para se passar por uma voz feminina. E falando sobre vocais, a força do cantor é a última peça que falta para dar a liga final em todas as canções, pois o mesmo consegue entregar em um pacote só um carisma avassalador, sensualidade latente, versatilidade, potencial vocal e técnica precisa. Essa genialidade vocal fica ainda mais exposta nos dois momentos finais de Faith: primeiro aparece a efervescia contagiante e explosiva de Monkey para depois o cantor nos envolver em uma performance old school e sedosa da jazz pop Kissing a Fool que originalmente foi gravada a capela. Com mais de trinta anos do seu lançamento, Faith é uma obra que consegue ser datada e atemporal ao mesmo tempo, sendo complexa, rica e de uma riqueza para a história da música. E mostra bem a força da natureza que foi a genialidade de George Michael que merece e deve ser reconhecida muito mais perante o público.
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