Dawn Richard
Até alguns anos atrás nunca tinha ouvido falar da palavra afrofuturismo, mas já tinha presenciado a sua magnitude ao longo dos anos. Para quem não sabe, afrofuturismo é “movimento cultural, estético e político que se manifesta no campo da literatura, do cinema, da fotografia, da moda, da arte, da música, a partir da perspectiva negra, e utiliza elementos da ficção científica e da fantasia para criar narrativas de protagonismo negro, por meio da celebração de sua identidade, ancestralidade e história; em geral, obras pertencentes a este movimento procuram retratar um futuro grandioso, caracterizado tanto pela tecnologia avançada quanto pela superação das condições determinadas pela opressão racial, dentro do contexto da vivência africana e diaspórica” de acordo com o site da Academia Brasileira de Letras. E esse movimento vem crescendo e ganhando força dentro da cultura pop/mainstream devido a sucessos como o filme Pantera Negra, basicamente toda a carreira musical da Janelle Monáe e o projeto audiovisual da Beyoncé em Black is King. Em Second Line, o sexto álbum da carreira da cantora Dawn Richard, se encaixa perfeitamente nessa categoria ao entregar uma suntuosa e eletrizante homenagem/exaltação ao afrofuturismo ao saber reverenciar o passado da mesma maneira que abre os olhos para o futuro. E isso é alcançado mesmo que o trabalho dê uma deslizada na sua parte final.
Em cerca de cinquenta minutos de duração, a cantora faz a gente embargar em uma jornada eletrizante e intricada de sons, texturas e experimentos que conseguem expressar com bastante precisão essa atmosfera sobre o afrofuturismo. Acredito que se existisse um festival de música em Wakanda, Dawn Richard iria se apresentar para mostrar toda a força de Second Line. A produção que tem a cantora como dos nomes que encabeça o time de produtores consegue fazer uma mistura realmente estilizada e, por muitas vezes, corajosa de R&B com eletrônico que fica bem na linha entre o passado e o futuro, ajudando a aumentar a importância da mensagem por trás. A principal razão para que o álbum consegue nos transportar para essa visão utópica do futuro são as doses bem calculadas de influências do pop britânico com pinceladas enriquecedoras de UK garage e drum and bass. Estilos e gêneros que se misturam perfeitamente com a base R&B/hip hop em uma costura de estilos que se alternam em transições perfeitas. E, obviamente, a produção não esquece de acenar à terra mãe ao adicionar uma dose cavalar e esplendorosa de ritmos africanos na mistura. Na interessante Bussifame, o público está diante de “uma excitante, frenética e rica mistura de dance-pop, R&B, electropop, funk e synth-pop com uma influência pesadíssima da house music dos anos noventa com toques de música africana. Esse caldeirão é impressionante e poderia facilmente desandar para o clichê, mas, felizmente, a produção Bussifame acerta na exemplar construção e, principalmente, na inteligente instrumentalização robusta”. E essa construção individual não é apenas o motivo de Second Line funcionar, mas também pela forma que todo as faixas conversam entre si, construindo uma coesa e fluida linearidade que terminar realmente em contar uma história sobre empoderamento de uma mulher negra que encontrou a sua voz.
Tente imaginar uma versão da Grace Jones que se encantou pela música eletrônica durante o novo milênio, pois é assim que vejo a figura artista da Dawn Richard durante toda a duração do álbum. Forte, sensual, empoderada, orgulhosa e sem ter medo também de transitar por caminhos mais sensíveis e íntimos, a cantora cria uma armadura luminosa e completamente consciente das suas fraquezas e forças que transparece em conversas com pessoas da sua família usadas como transições entre as canções de maneira natural, mas também pelas sinceras composições. Na faixa Mornin / Streetlights, dividida em duas partes, Dawn entrega uma complexa e aveludada mistura de R&B com electropop que começa com um dialogo com a sua mãe sobre ter amada apenas o seu pai para depois discutir sobre se apaixonar e sobre o sentimento de sempre procurar o grande amor. Como um dos melhores momentos do álbum, a canção também deixa claro que afrofuturismo não é apenas um movimento estético, mas, também, emocional ao resgatar as emoções e poder expressar sentimentos que por muitas vezes precisam ficar renegados a um segundo plano devido a imposições da sociedade, especialmente sobre a mulher negra. Logo em seguida de Mornin / Streetlights, a cantora entrega na balada em estilo clássico na Le Petit Morte (a lude) um testemunho sobre reclamar os seus sentimentos de quem a fez sofrer:
This is the last time I'm gonna write a song about you
My breath is too precious to waste if it ain't truth
We could have been legendary
The kind of greatness that makes a sanctuary
Mesmos sendo apenas uma intro, a faixa tem uma força que realmente faz a gente entender melhor sentimentos que por muitas vezes foram apagados da existência de mulheres negras devido as imposições de comportamento. Uma pena, porém, que a partir dessa faixa, Second Line perca força devido algumas escolhas erradas da produção, deixando a parte final arrastada e um pouco sem foco. Possivelmente, a escolha de entregar uma sonoridade mais tradicional tenha ajudado a criar esse vácuo no álbum, mas tudo é salvo pela majestosa SELFish (Outro) que recupera toda a potencial dois terços anteriores. Uma qualidade rara que Second Line é fazer as famosas “intros” funcionarem melhor que o esperado. Além da já citada Le Petit Morte (a lude), outras que merecem destaque é a que abre o álbum em King Creole (Intro), pois a faixa dá exatamente o tom de todo o álbum, e a eletrizante FiveOhFour (a lude) que merecia como poucas ter uma versão “inteira”. Outros momentos de destaque ficam por conta da batida eletrizante de Nostalgia, a densidade e sensualidade de Pressure e, por fim, o envolvimento dançante de Jacuzzi. Mesmo não sendo perfeito, Dawn Richard entrega o perfeito veículo para a gente começa a entender não uma tendência, mas, sim, um movimento de reconquista da narrativa.
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