18 de abril de 2019

Primeira Impressão

GREY Area
Little Simz


Normalmente, a minha rotina de resenhar um álbum segue a mesma sequência: 

1. Ouço o álbum;
2. Avalio os destaques e qual a nota que o mesmo merece;
3. Começo a pensar sobre o que escrever sobre o álbum, pensando, principalmente, sobre o conteúdo do texto;
4. Espero um ou dois dias para as ideias amadurecerem;
5. Quando acredito que tenha o texto prévio na cabeça, eu começo a escrever;
6. Ao terminar, corrijo possíveis erros gramaticais;
7. Publico.

Então, nesse exato momento estou fazendo o descrito no número 4 e vocês estão no pós 7. Todavia, ao contrário da maioria dos álbuns que já resenhei tive que repensar completamente o número 3, pois ao prestar atenção no mesmo descobri que iria seguir um caminho que, sinceramente, não seria o mais justo para resenhar o novo álbum da rapper britânica Little Simz, GREY Area. O mote principal seria uma análise comparando o trabalho com os álbuns do Kendrick Lamar. Não que tenha descoberto que a rapper não possa ser comparada ao contemporâneo americano, mas, sim, que a relação entre os dois seria um ato inconsciente de machismo ao precisar encontrar um paralelo com um homem para validar o trabalho de uma mulher. E o que piora esse meu pensamento é saber que GREY Area se sustenta sozinho, pois o mesmo é um trabalho que apenas posso classificar como espetacular. Felizmente, descobrir esse meu gravíssimo erro a tempo para dar a mais justa e merecida resenha. 

Nascida em Londres de pais nigerianos, Simbiatu "Simbi" Abisola Abiola Ajikawo, nome verdadeiro de Little Simz, chega ao seu terceiro álbum da carreira conseguindo alcançar uma aclamação que muitos passam anos procurando. Com apenas vinte e cinco anos, Little Simz mostra em GREY Area que não veio para ser uma simples promessa de uma grande artista e, sim, uma verdadeira força da natureza no presente. Começa pelo fato de Little Simz ser uma verdadeira "assassina" no que de mais importe um rapper precisa ser: o seu flow. Com personalidade bem definida, a rapper parece se basear no old school para estabelecer o a sua maneira de entoar cada canção, sendo extremamente direta e longe de qualquer firulas ou modismo.

Ouvir a rapper é parecido com ouvir algum grande orador moderno que se mostra com uma segurança, objetividade e clareza que quase parece inumano. Entretanto, Little Simz consegue dosar com uma força emocional impressionante, transitando entre a fúria, a frustração, a melancolia, a desesperança e até mesmo o amor. E isso é apenas no campo "artístico", pois Simz é dona de uma técnica limpa e de uma concisão sem comparação que é "adocicada" com o seu delicioso sotaque britânico. Logo na primeira faixa é fácil de compreender o talento da rapper: em menos de três minutos, Offence é uma perfeita e avassaladora introdução que quebra expectativas ao ter uma composição em versos que soam "quebrados", deixando a performance de Little Simz ainda mais impressionante. A presença da rapper não teriam o mesmo resultado se não tivesse letras que não fossem o veículo ideal para serem entoados com tanta força. E, queridos leitores, GREY Area é recheado desse tipo de composições. Não apenas recheado, mas totalmente composto de canções com letras de uma qualidade impressionante. 


Little Simz é dona de uma poética que, assim como o seu flow, se destaca pela sua franqueza, visceralidade e uma intensidade quase palpável. E, principalmente, as composições em GREY Area não tem nenhum medo de enfiar todos os dedos na ferida. Falando com a mesma urgência sobre assuntos espinhosos como o problemas da violência armada, empoderamento feminino, depressão e nostalgia, Little Simz é uma cronista excepcional que consegue dar um camada de poesia urbana nas suas letras, refletindo fortemente a partir de seu ponto de vista. Sem se utilizar de grandes construções semânticas ou palavras que é necessário um dicionário para compreender os seus realis significados. A rapper é de uma clareza comovente, sabendo como construir cada canção de uma maneira que consiga expressar seus pensamentos como se estive em uma simples conversa. Sem esquecer, porém, de um verniz artístico rústico e, ao mesmo tempo, delicado que apenas eleva as composições. Um bom exemplo é a canção que encerra GREY AreaFlowers com a presença do ótimo Michael Kiwanuka é uma surpreendente e tocante faixa sobre depressão e as desvantagens de se tornar famoso, dedicando um verso inteiro que remete a vida da Amy Winehouse. Sonoramente, o álbum é um trabalho impressionantemente contido.

Capitaneado quase que totalmente pelo produtor Inflo, GREY Area poderia ser uma obra que fosse sonoramente gigantesca com propósito de "segurar" todo o peso que a rapper despeja em suas performances e nas suas letras. Entretanto, o produtor decidiu seguir o caminho contrário ao dar para o álbum uma sonoridade comedida. Misturando perfeitamente hip hop com eletrônico e influências de gêneros típicos da Inglaterra, a produção é capaz de criar uma sonoridade que consegue reverenciar o já estabelecido e mostrar algo excitante e novo. Cheio de nuances e texturas, mas sem nenhum pingo de exagero, GREY Area é um trabalho coeso, dinâmico, cheio de personalidade própria e que deixa a maioria dos álbuns de hip hop lançados esses anos simplesmente no chinelo. Na verdade, apenas três das melhores canções do álbum já iria alcançar esse feito: começa pela pesada, badass e empoderada Boss, passa para Venom com Little Simz entregando uma performance perfeita e chega na fusão de hip hop com idie rock/pop com participação da banda Little Dragon. Outros momentos que merecem ser destacados são Wounds e Sherbet Sunset. Sem comparações ou paralelos que possam a diminuir, Little Simz entrega um álbum que deverá ser lembrando como um dos melhores de 2019. 


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