6 de setembro de 2020

Antes Tarde do Que Nunca

Jagged Little Pill
Alanis Morissette


Ao fazer a resenha do álbum Blue da Joni Mitchell escrevi sobre que "cada geração tem em seus ídolos musicais a representação em forma de canções das suas vozes". Escrevi um pouco sobre como um artista e/ou um álbum é capaz de influenciar ao mesmo tempo que "explica" toda uma geração e como essas canções conseguem se manter com a mesma força após anos de seus lançamentos. Dessa vez, o álbum escolhido para o Antes Tarde do Que Nunca fala com uma geração com um escopo menor que o álbum citado, mas com uma importância única para esse público e, também, para a indústria fonográfica. Hoje irei relembrar um dos principais álbuns dos anos noventa: o arrasa quarteirão Jagged Little Pill da Alanis Morissette.

Quando lançou Jagged Little Pill em 1995, Alanis Morissette tinha acabado de entrar na casa dos vinte anos e já tinha lançado dois álbuns que não tiveram nenhuma repercussão longe do seu país de origem, o Canadá. Depois de terminar o seu contrato com a então gravadora, a cantora e a seu gerenciamento decidiram mudar de ares, principalmente após conhecer o produtor Glen Ballard. Dessa união nasceu não apenas o álbum, mas uma mudança drástica na sonoridade de Alanis que foi de um dance-pop/new wave para um rock/pop rock/post-grunge que ajudou a definir o resto da década. E o lançamento do álbum não poderia ter sido em melhor momento culturalmente, pois a década de noventa tinha uma geração imensa de garotas que transitavam entre a adolescência e o começo da fase adulta que estavam meio perdidas em relação a quem eram em uma sociedade que parecia não ter espaço para ouvir as suas vozes. Essas garotas eram a geração de filhas das mulheres que ajudaram a revolucionar o mundo nos anos setenta com a ascensão do feminismo. Sem exatamente saberem qual o lugar do mundo e ainda lidando com o vazio que a década de noventa parece carregar, essas jovens não tiveram vozes suficientes que as representavam no entretenimento ou aquelas que existiam não satisfaziam muito bem as necessidades desse grupo como, por exemplo, a Madonna. Para entender que geração era essa é necessário entender o que elas acharam em Jagged Little Pill.

Em primeiro lugar, Alanis era também uma jovem adulta que usou Jagged Little Pill como um diário para expor os seus complexos sentimentos. Obviamente, essas emoções são as mesmas que da geração que a cantora fazia parte. Uma mistura de raiva, decepção, angústia, medo, esperança, desejo e contemplação faziam parte de um caldeirão explosivo, nervoso e agitado que consegui captar com perfeição toda uma legião de garotas trancadas nos seus quartos com ódio de seus pais por algo motivo, ouvindo no volume máximo os seus tocadores de cassete/CD com pôsteres do Nirvana ou o do Pearl Jam colados na parede. Felizes que finalmente tinham uma voz vinda de uma pessoa que realmente sabia o que se passavam nas suas cabeças, Jagged Little Pill não falava apenas diretamente com esse público, mas havia toda uma conversa nas entrelinhas que ajuda a entender melhor essa geração e, também, o álbum. 

Assim como essa geração, Jagged Little Pill não tinha exatamente uma direção sobre o que falar ou, principalmente, sobre como falar. Durante quase uma hora de duração, Alanis toca em diversos assuntos, assim como entrega uma variedade bem mais diversificada de gêneros e estilos que o senso comum imagina para um álbum que venceu o Grammy de Melhor Álbum de Rock. Obviamente, a base é uma mistura de rock alternativo e post-grunge que dá para o álbum a força necessária para equiparar o peso das suas mensagens, mas é o toque pop/pop rock que transformou Jagged Little Pill em um álbum tão abrangente comercialmente e culturalmente. Nessa salada mista sem exatamente um grande foco mora a semelhança por debaixo dos panos entre o álbum e a geração para quem é destinado: a grande sensação de querer ser tudo ao mesmo tempo, mas sem saber onde realmente quer chegar. 

Conhecidos também como parte da geração Y, o principal público do álbum queria ter sua voz ouvida sem ter ideia de como isso poderia influenciar o restante do mundo a sua volta, mas tendo a certeza que a sua mensagem é importante. Logo na primeira faixa do álbum isso fica bem claro: em All I Really Want, uma pop rock com toques de folk e leves toques de música irlandesa, Alanis clama sobre todos os seus inquietos desejos: 

It's all I really want, some patience
A way to calm me down
And all I really want is deliverance
A place to find a common ground
And all I really want is some justice

A balada power balada rock/post-grunge Right Through You toca em um assunto pouco explorado na época que parece mais moderno que nunca: sexismo e assédio na indústria fonográfica. Assunto que iria se tornar pauta décadas depois ganha uma representação vívida em Jagged Little Pill com a performance poderosa de Alanis, bravejando versos desconcertantes:

You took me for a joke
You took me for a child
You took a long hard look at my ass
And then played golf for a while
Your shake is like a fish
You pat me on the head
You took me out to wine dine 69 me
But didn't hear a damn word I said

É aqui que podemos ver claramente que uma das chaves motoras para que a cantora tenha puxado para si o papel de voz de uma geração é literalmente a sua voz.

Quando lembramos de Alanis Morissette não é comum liga-la a uma imagem de uma cantora com uma grande voz e dona de performances memoráveis. Isso acontece pelo fato das suas músicas terem outros elementos com destaque mais acentuados como, por exemplo, as letras. Todavia, ao olhar com um pouquinho de cuidado é possível notar que a cantora é uma gigante vocalmente. Com um timbre único que a coloca em uma categoria própria ao lado de nomes como Cyndi Lauper e Kate Bush, Alanis impressiona também com o potencial e a versatilidade imposta nas performances que não teriam o mesmo impacto se não tivessem envernizadas em uma personalidade excepcional e única. Imagine cantar o clássico You Oughta Know sem reverberar com a mesma raiva toda as emoções jogadas na cara do público nessa crônica ousada, atemporal, ácida e enfurecida de uma ex na procura de uma satisfação, expiação e vingança após ser trocada por outra. Sinceramente, a canção seria outra coisa bem diferente e, possivelmente, não teria o mesmo impacto se não tivesse a marca de Alanis do começo ao fim. E ao ter tamanha distinção vocal é até possível perdoar momentos de exageros e aqueles que parecem fota de tom e afinação como em Forgiven, uma power balada sobre a relação da cantora com a religião católica. Outro fator importante para a consagração de Jagged Little Pill foi a destreza que Alanis conseguiu colocar os seus pensamentos em composições pungentes, mas de fácil assimilação. 

Apesar de abordar sentimentos complexos, amplos e com várias possibilidades de representações, a cantora mostrou uma lírica rápida, cortante, simples direta e sem nenhuma tentativa floreamento desnecessário. Com humor corrosivo ou uma delicadeza tocante, Alanis tem essa habilidade de falar sobre assuntos espinhentos como se fosse uma conversa entre duas amigas ou como se fosse uma página de um diário. E apesar dessa falsa aparência de simplicidade, as composições em Jagged Little Pill são trabalhos tecnicamente inteligentes com passagens não apenas bem escritas, mas, também, realmente inspiradas. É impossível não se sentir inspirado e cantar junto com a esperançosa Hand In My Pocket. Está se sentido abatido por alguma coisa que aconteceu na sua vida? You Learn é o seu hino para tentar começar a sentir melhor. E, claro, a genial Ironic é dona de um dos mais icônicos versos de todos os tempos:

A traffic jam when you're already late
A "no smoking" sign on your cigarette break
It's like ten thousand spoons when all you need is a knife
It's meeting the man of my dreams
And then meeting his beautiful wife
And isn't it ironic, don't you think?
A little too ironic, and yeah I really do think


Outros momentos que precisam de destaque ficam por conta de Hand Over Feet sobre os problemas que alguém tem em  abrir em uma relacionamento, a ácida Not The Doctor sobre a dificuldade de manter um relacionamento com alguém que ainda não amadureceu e, por fim, Your House (a cappella), a faixa surpresa após a versão diferente You Oughta Know, que mostra sem filtros o belo timbre de Alanis. Completando vinte e cinco anos de lançamento, Jagged Little Pill tem na bagagem cinco Grammys, incluindo o de Álbum do Ano como atém então a pessoa mais jovem a receber o prêmio, cerca de 33 milhões de cópias vendidas ao redor do ano, um musical baseado na Broadway que teve a sua estreia adiada devido a pandemia e uma legião de agora adultas mulheres que tiveram em Alanis a voz que apareceu no momento certo.

Um comentário:

lucas lopes disse...

Um álbum com zero defeitos. Atemporal e necessário.