20 de março de 2022

Primeira Impressão

MOTOMAMI
ROSALÍA




Não há como negar que a carreira da Rosalía é histórica. A espanhola surgiu timidamente com o seu debut Los Ángeles de 2017 para estourar criticamente com El mal querer de 2018, rendendo uma construção posterior da carreira que a fez se tornar uma potencia comercial no mundo inteiro sem precisar lançar uma canção em inglês solo ou como participação. Todavia, apesar de toda a aclamação, acredito que poucos poderiam realmente esperar o resultado de MOTOMAMI: um magistral tratado sobre os limites do comercial e experimental em que a cantora não deixa margem para qualquer duvidas da sua genialidade artística.

A melhor comparação para o que a cantora está fazendo com a sua carreira é com a Kate Bush. Apesar de esteticamente completamente diferentes, a lenda britânica e a ascensão espanhola têm uma mesma qualidade base das suas sonoridades: a facilidade de saber explorar os limites do seu oficio. Existe uma fundação sólida em ambas discografias, mas que tem construções por cima que buscam ângulos esquisitos, métricas inovadoras e uma estética única e desafiadora. Escrevi na minha resenha de Hounds of Love da Kate o seguinte: “enquanto somos inundados por dezenas que nuances, sons, batidas e escolhas que parecem que não estão no lugar certo, mas que quando ouvidas todas parecem que nasceram para serem dessa forma, Kate Bush nos leva em uma jornada adentro da sua mente, assim como o coelho levou Alice”. É exatamente assim que MOTOMAMI se comporta: uma viagem ao que parece ser conhecido, mas que encontramos uma distorção da realidade de forma a satisfazer o bel prazer da noção de pop da Rosalía. E, queridos amigos, a visão da sobre o pop é nada menos que genialidade pura.

Apesar de seguir a linha experimental de EL MAL QUERER que foi a desconstrução do flamenco, o seu sucessor é a decodificação e reconstrução do latin pop, especialmente e mais em evidencia do reggaeton. E é aqui que começa os louros de MOTOMAMI, pois seria fácil apontar a apropriação cultural de Rosalía por ser espanhola de uma sonoridade latina americana, mas o imenso respeito e conhecimento que é aplicado na construção do álbum consegue deixar essa impressão facilmente de lado. O resultado final é uma carta de amor de uma pessoa que se inspira para poder dar a sua visão da forma de maior elogio possível. Isso é rapidamente mostrando logo na abertura com a explosão de Saoko: “um mergulho de cabeça no reggaeton com o plot twist da visão da cantora em uma veloz, única e poderosa canção que adiciona doses de eletrônico com toques sensacionais de jazz fusion. Essa mistura é o que eleva a canção para um parâmetro em que mostra a Rosalía como uma das artistas mais originais da atualidade”. Com exatamente dois minutos e dezessete segundos, a canção é a mais perfeita escolha para ser o abre-alas de MOTOMAMI já que consegue dar exatamente o tom de todo o álbum: uma metralhadora carrega disparando incontrolavelmente.

Mesmo contado com uma profundida grande de compositores e produtores que vão desde o The Weeknd, James Blake e Pharrell Williams até nomes conhecidos da música latina como El Guincho, Tainy e Rauw Alejandro, MOTOMAMI tem a Rosalía como principal nomes em todos as frentes, dando realmente a sensação que o estamos ouvido é realmente saído da mente da cantora. Por isso, perceber que o álbum tem essa qualidade artística de reconstrução de gênero é algo que fica ainda mais impressionante. Tecnicamente, o álbum é um trabalho de pop alternativo/reggaeton que vai adicionando camadas extremamente ricas de jazz, indie, art pop, samba, eletrônico, flamenco, hip hop, bachata, rumba, synth-pop, entre outros. Todavia, definir o que é apresentado aqui é um trabalho realmente complicado, pois a cada mudança de canção é apresentado uma nova faceta de Rosalía diferente da anterior e que não dá nenhuma pista do que ainda está por vim. E isso quando isso não acontece em apenas uma faixa. A composição extremamente sexual e pitoresca de Hentai contradiz inteirar a sua delicada e minimalista instrumentalização em uma balada a base de piano que chega a ser emocionante, mas que funciona de maneira impressionante e mesmo depois é adicionado uma batida de pegada industrial na sua parte final. Logo em seguida dessa mistura improvável surge a frenética Bizcochito com a sua batida que entrega uma bachata eletrônica. Cada detalhe da construção da sonoridade de MOTOMAMI é um cuidado extremo, pois tudo consegue fazer sentido no contexto geral, mas, também, funciona muito bem ao serem isoladas. Com uma fluidez excêntrica que não tem medo de criar atritos já que sempre busca o inesperado.

Uma das canções mais “tradicionais” do álbum, a linda construção de Candy entrega uma verdadeira elevação do reggaeton com latin pop que mostra que facilmente é possível para sair do lugar comum e ir além com um pouco de apuração estética. Com mais ousadia, o resultado pode ser algo tão interessante como a refinada Diablo que conta uma pitada rápida e surpreendente do estilo do James Blake que deixa um gosto de quero mais delicioso. Em Delirio de Grandeza, Rosalía mostra que consegue casar de maneira natural a tradição do cancioneiro mexicano com uma batida hip hop devido ao sample de Delirious dos rappers Vistoso Bosses e Soulja Boy. Mesmo descontruído outros gêneros, Rosalía retorna ao flamenco em uma minimalista e impressionante Bulerías. Ouvindo cada uma das canções é impossível pensar que tudo isso poderia ser alcançado por outra artista, pois, além da presença nos bastidores, Rosalía está em estado de graça vocalmente.

Sem nenhuma dúvida, a cantora está cercada de uma das melhores produções vocais dos últimos anos. Cheia de efeitos vocais, especialmente o do auto-tune, as decisões de modificações nunca soam forçadas, desnecessárias ou pretenciosas. Em todos os momentos, cada inserção de mudanças vocais que dependem pensadamente de efeitos é sempre muito bem pensadas, muito bem realizadas e, especialmente, muito bem exploradas. Tudo funciona de maneira de maneira a se fundir com a intenção de cada canção da melhor maneira possível e não erra em nenhum momento, mas o grande trunfo aqui é a potencia natural da voz de Rosalía. Dona de um timbre belíssimo que para os meus ouvidos soam como a versão sonora de um córrego de água gelada e cristalina, Rosalía consegue carregar qualquer uma das canções de forma extraordinária, sabendo modular a sua força e personalidade naturalmente. Obviamente, momentos em que a voz da cantora se encontra na sua forma mais natural é quando a cantora encontra a seu maior brilho: Sakura, a faixa que termina o álbum, emoldura ou parece uma versão ao vivo é o ápice da magnitude e beleza da voz da cantora que mostra toda as suas raízes no cancioneiro espanhol. A delicada performance em Como un G consegue casar lindamente com os efeitos usados, mas é a emoção da cantora que faz a música ser especial. Mesmo não sendo no mesmo nível que outras faixas, a química com o the Weeknd é algo excecional em La Fama. Outros momentos importantes do álbum ficam por conta da sentimental carta de amor a sua família em G3 N15, a influencia sensacional da batida de uma escola de samba na explosiva Cuuuuuuuuuute e, por fim, a canção que dá nome ao álbum Motomami. Com esse caminhão de vinte eixos passando por cima de qualquer hype para depois reconstruir tudo de maneira inesquecível, Rosalía fica os dois pés no mainstream da música fazendo exatamente o que quer e como quer. E isso é para apenas verdadeiras artistas.

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