Elza Soares
Em oito de Janeiro de 2016 David Bowie lançou o seu vigésimo sexto álbum intitulado Blackstar. Dois dias depois, o cantor faleceu devido a complicações de um câncer de fígado que até o momento tinha sido não revelado publicamente. É bem provável que Bowie pensou o álbum como seu último ato como artista devido a gravidade do seu estado. Não acredito que No Tempo da Intolerância tenha sido pensado com a mesma intenção, pois Elza Soares começou a gravar em 2021 e devido a pandemia de Covid foi adiado. Entretanto, o trigésimo sexto trabalho da cantora é uma despedida de uma das maiores artistas que o Brasil teve que, apesar de não chegar ao brilhantismo de A Mulher do Fim do Mundo, consegue encerrar com dignidade ímpar e com uma verdadeira completude.
Produzido por Rafael Ramos, responsável também por Planeta Fome, No Tempo da Intolerância é basicamente a amálgama do que é a sonoridade básica de Elza: uma mistura fundamental de MPB e samba com toques de rock e pop aqui e acola. E apesar de não chegar a ousadia experimental do trabalho que reinventou a carreira da cantora, a produção é o consciente o suficiente para saber que para dar a perfeita base é apenas necessário fazer um excelente arroz com feijão em que Elza possa adicionar toda a sua gigantesca personalidade e que torna qualquer canção em um espetáculo por si. Lindamente bem instrumentalizado, fluido, maduro, elegante e de uma brasilidade a flor da pelo, o álbum caminha na direção de não quer reinventar a roda e, sim, fazer a roda da discografia de Elza rodar de maneira a respeitar, louvar e glorificar a mesma. E isso é feito no instante que cada momento do álbum é preenchido pela presença de Elza.
Sim, a cantora não tinha a mesma voz dos áureos tempos, mas, sinceramente, gênios como Elza nunca perdem a força bruta da sua presença ao adicionar toda a sua bagagem para cada uma das suas performances. É quase como uma força espiritual que imunda os ouvidos de quem ouve Elza declamar com a mesma graça e paixão de quarenta ou cinquenta anos atrás. Se a voz física parece mais contida, a voz de sua ala continua a mesma devastadora. E logo nos primeiros momentos do álbum é possível sentir com a espetacular Pra Ver se Melhora. Cantando sobre a esperança quase imortal do povo brasileiro com um futuro melhor é possível sentir a clara e tocante identificação com a letra que Elza possui, pois, assim como milhões de brasileiros, a mesma também foi uma das sonhava com uma vida melhor quando tentou a sorte em um show de calouros no começo da carreira para poder comprar remédios para seus filhos. E, novamente, Elza é essa arauta do Brasil ao falar sobre problemas sociais, políticos e econômicos que a mesma viu durante a sua vida inteira.
No Tempo da Intolerância faz uma trinca excepcional de três faixas que tocam de maneira ímpar sobre o brasil. Além da já citada Pra Ver se Melhora, o álbum conta com Coragem sobre a luta que Elza passou a vida sobre vida por ser uma mulher negra no Brasil e como a mesma nunca parou de batalhar e, a faixa que dá nome ao álbum, No Tempo da Intolerância que a mesma evoca a figura de Martin Luther King para refletir sobre o Brasil atual, especialmente o cenário vivido após a eleição de um certo revendedor de joias. Isso é destrinchado no devastador verso inicial:
No tempo da intolerância
Acordou com o pé esquerdo
Tem que ir pra Cuba
A camisa do Brasil é coisa de fascista
A mulher que faz o que quer é chamada de puta
Homem que casa com homem é chamado de bicha
Existe também uma noção de celebração da figura de Elza, pois existe duas canções que foram feitas para enaltecer a artistas. Em Feminelza, escrita totalmente pela Pitty, a letra reflete um pouco sobre o lugar da cantora com a construção do feminismo durante toda a sua vida. E, mais sentimental, está Rainha Africana que é uma composição feita especialmente pela Rita Lee e o Roberto de Carvalho antes do falecimento de ambas cantoras. Todavia, a faixa que melhor representa a figura de Elza é sensacional Mulher pra Mulher (A Voz Triunfal) em que a cantora declara que “Bora lá vai ter que pautar, escutar, incluir/ No seu feminismo de bandeira branca, a minha pele negra”. Finalizando No Tempo da Intolerância está a linda samba/soul No Compasso da Vida de coautoria da lendária Dona Ivone Lara em que existe o poderoso verso “Nascer mulher pra renascer de novo”. No Tempo da Intolerância não é uma despedida, pois Elza é um ser celestial eterno que cravou seu nome no firmamento para todo sempre. É reconfortante e emocionante até logo para uma das maiores que o Brasil teve, tem e terá.
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