8 de junho de 2025

Primeira Impressão

Sincerely,
Kali Uchi
s



Existe algo poderoso e interessante em um álbum lançado após uma cantora se tornar mãe que o diferencia de todos os outros da sua discografia. Não é necessário, obviamente, que uma cantora seja mãe, pois muitas atingem esse nível sem precisar passar por essa fase ou chegam lá antes disso. Todavia, muitas alcançam um novo patamar artístico em trabalhos que, de alguma forma, refletem essa fase. A mais nova a entrar nesse círculo é Kali Uchis, ao entregar, em Sincerely, o seu melhor trabalho da carreira.

Quinto álbum de sua carreira, o trabalho é uma reflexão que não se estende apenas sobre o nascimento de seu primeiro filho, em março de 2024, mas também pela morte de sua mãe. Todavia, o resultado do álbum reflete mais um lado “esperançoso”, em que Kali parece claramente encontrar uma clareza pura e cristalizar pensamentos sobre a vida. A cantora não parece querer mostrar que encontrou o sentido da vida, mas, sim, o que faz a mesma viver e qual é o seu propósito no mundo. Isso é algo impressionante, pois, em sua lírica, é expresso todo o seu estado mental de maneira madura, poética, envolvente, inteligente e profunda, com doses perfeitamente equilibradas de clichês, sentimentalismo, sensualidade e dramaticidade. E tudo encontra o seu momento mais impressionante logo na primeira faixa: a magistral Heaven Is a Home….

Escrita enquanto a cantora ainda estava grávida, mas que ganhou novos contornos depois de sua mãe ficar doente, a faixa é uma belíssima, tocante e devastadora power balada sobre querer proteger quem amamos de todo o mal do mundo. De uma sinceridade absurda, Heaven Is a Home… mostra uma vulnerabilidade imensa da cantora, ao também evidenciar que, apesar de todo o desejo, não temos todas as ferramentas para “salvar” quem amamos dos perigos, restando-nos pedir pelo melhor e fazer o que está ao nosso alcance. A canção ganha novos contornos quando percebemos que a faixa que encerra o álbum, ou seja, a que está na outra ponta da jornada, é ILYSMIH, em que a cantora “apenas” aceita o fato de que a vida seguirá seu curso, precisando apenas fazer o seu melhor para criar seu filho com todo o seu amor. Em versos como “All the world is crazy, but you're here / My baby made me realize that nothing else even matters”, Kali demonstra o quanto sua escrita é refinada, sempre limpa e direta.

O recheio dessa jornada é algo realmente inspirado, sendo não apenas o melhor trabalho lírico de Kali, mas também a condução mais brilhante em termos de sonoridade. Sem mudar o destino já estabelecido de sua sonoridade R&B/pop, a produção do álbum — que conta com a cantora também como produtora em todas as canções — entrega a mais luxuosa, aveludada, refinada, classuda e graciosa sonoridade da já impressionante discografia de Kali. Com doses de neo soul, pop, pop soul, dream pop, psicodelia e alternativo, o álbum cria ainda mais substância e profundidade para uma sonoridade já rica em tais características. Sincerely é o exemplo claro de uma identidade sonora consolidada que recebe os toques perfeitos para alcançar sua melhor forma possível. É evidente que o resultado final soa mais fluido, resplandecente e apurado devido ao cuidado extremo e a uma criatividade inspirada.

Um dos momentos de maior destaque é quando o álbum apresenta toques mais “ousados”, como em All I Can Say, que flerta pesadamente com o doo-wop, criando uma personalidade única para a canção. Obviamente, a produção também acerta em cheio ao explorar o lado mais conhecido da persona de Kali, como no single Sunshine & Rain, que “adiciona de maneira deliciosa e inspirada toques de neo soul, psychedelic soul e trip hop para criar uma batida sofisticada, sedosa, cativante e adocicada”. Encerrando tudo com chave de ouro, está a presença magnífica e radiante de Kali Uchis, que entrega as suas mais sedosas, envolventes e sensacionais performances vocais. Essas interpretações carregam doses emocionais diversas e poderosas, transmitindo toda a gama de emoções que o álbum explora. Por exemplo, a mesma força densa e raivosa de Territorial, sobre “assegurar” o que é seu afetivamente, é redirecionada para a doçura e o suingue de Angels All Around Me. Isso deixa claro o alcance artístico da cantora. Outros momentos de destaque do álbum incluem a atmosfera convidativa de Sugar! Honey! Love!, a base soul vintage de Lose My Cool, a influência dos anos setenta em For: You e, por fim, a doçura sonora de Daggers!.

Eu poderia facilmente afirmar que Sincerely, consagra Kali Uchis, mas isso já havia ocorrido há muito tempo. Na verdade, o álbum é um marco na vida da cantora, em que ela usa toda a sua força criativa para refletir sobre um momento de dor e, ao mesmo tempo, o momento mais feliz de sua vida. E isso é algo alcançado apenas por quem já é consagrado.

Nenhum comentário: