22 de junho de 2025

Antes Tarde do Que Nunca

American Life
Madonna




O primeiro grande flop é inesquecível, ainda mais quando você é a Rainha do Pop. Ainda mais quando esse flop está literalmente entre dois grandes momentos da carreira. Todavia, depois de mais de vinte anos passados do lançamento do controverso American Life, é preciso notar que o trabalho não é esse equívoco tão grande na discografia da Madonna, mas é, sim, um certo equívoco artístico ao não ter uma das características mais predominantes da carreira da cantora: personalidade.

Lançado em 2003, American Life foi lançado em um momento curioso da carreira da cantora, pois, ao contrário de outros momentos mais conturbados, Madonna vivia um momento calmo na sua vida pessoal, vivendo os primeiros anos da maternidade e sendo então casada com o diretor Guy Ritchie. Além disso, a cantora ainda colhia os frutos das eras Ray of Light e Music, especialmente com o desempenho da turnê Drowned World Tour. Entretanto, o mundo vivia (e ainda vive, para ser sincero) um grande tumulto sociopolítico mundial, com os ataques de setembro que coincidiram com as últimas datas da turnê. Com isso em mente e querendo se expressar sobre suas visões, Madonna voltou ao estúdio, novamente ao lado de Mirwais Ahmadzaï, para criar o que seria o seu primeiro álbum conceitual. E o que seria esse conceito é, na prática, um dos detratores do álbum.

American Life seria uma crônica sobre a sociedade pós-11 de Setembro e a subsequente guerra no Iraque, com doses grandes de temáticas sobre culto à celebridade, consumismo e, claro, toda a concepção do sonho americano. E isso não seria um grande problema, pois Madonna, ao longo da sua carreira, já teve dezenas de canções que tocaram em assuntos espinhosos com maestria, como, por exemplo, Papa Don't Preach e Erotica. O grande problema, porém, é que a média das composições aqui são trabalhos que ficam, em questão de qualidade e criatividade, apenas na média, com alguns bons momentos verdadeiros. Não há nenhuma bomba verdadeira, mas estão bem longe do nível que a cantora entregou ao longo dos anos, até mesmo em canções menores da sua discografia. Faltou aqui um apuramento técnico e criativo para refinar as composições. Faltou uma visão menos centrada para deixar as canções com um apuro temático e estético mais alinhado com a personalidade da cantora. Resumidamente, as composições carecem da personalidade da cantora na sua forma mais pura e genuína, mesmo que muitas canções sejam totalmente voltadas para a vida da cantora.

Novamente, essa característica não seria um problema se a visão das letras, que parte diretamente das suas experiências e vivências, não fosse tão desconcertantemente “cringe” e superficial. Enquanto em outros momentos ouvíamos uma Madonna que voltava para si de uma forma que conseguia expressar sentimentos apurados, profundos e emocionais, American Life mostra uma Madonna que mistura clichês com análises profundas, superficialidade com sinceridade, autorreferências desconcertantes com uma estética refinada e muitos momentos de vergonha alheia com instantes de grande apuro temático. E essa montanha-russa de nuances líricas ajuda a dar ao trabalho essa impressão forte e genuína da falta de personalidade: é a Madonna, mas é uma cópia turva da Madonna. E acho que o ponto alto dessa sensação é justamente na canção que foi o primeiro single, que abre o álbum e que dá o seu nome: American Life.

Preciso dizer que a canção é boa, sendo uma das melhores do álbum e tendo envelhecido melhor que o esperado. Entretanto, a canção também é uma amostra bem clara do problema lírico que o álbum tem de forma geral. Como o próprio nome pode revelar, a canção é uma crítica em relação ao sonho americano e a como isso afeta as pessoas, partindo, claro, da visão da Madonna. A composição de American Life funciona em partes, pois dá uma visão bem honesta da Rainha do Pop sobre o assunto, especialmente no melhor verso da canção:

I tried to stay ahead
I tried to stay on top
I tried to play the part
But somehow I forgot
Just what I did it for
And why I wanted more

Esses versos fazem a gente entender muito bem o ponto de vista da cantora e também da pessoa, pois partem de um lugar que conseguimos compreender qual é o entendimento da artista perante o tema. Todavia, a canção dá uma guinada de 180° quando chega no infame verso em que Madonna mostra a sua versão rapper e abre com a seguinte pérola: “I'm drinking a soy latte, I get a double shoté It goes right through my body, and you know I'm satisfied”. É aqui que toda a superficialidade e pieguismo verdadeiro invadem a lírica do álbum, deixando essa impressão de vergonha alheia na “boca”, misturada com toques de incredulidade e uma pitada de humor involuntário.

Alinhada a essa sensação da canção vem o videoclipe, que precisou ser censurado devido à polêmica causada pela cena em que a cantora lança uma granada no então presidente americano Bush. A canção se tornou o primeiro single de um álbum de menor impacto comercial na carreira da cantora desde sua canção de estreia (Holiday), alcançando apenas a 37ª posição na Billboard. A recepção negativa da canção na época também ajudou a consolidar esse primeiro grande flop da Madonna.

Sonoramente, o resultado da canção também ajuda a entender esse desfecho. Assim como boa parte do álbum, a canção é uma mistura de folktronica com eletropop, art pop e eletrônico que mostra a qualidade técnica da produção, mas deixa a desejar criativamente. Isso se deve principalmente à impressão de que a cantora já tinha experimentado melhor e de forma mais impressionante nos trabalhos anteriores, criando essa clara comparação que atrapalha ainda mais a compreensão do conceito por trás desse caminho. Novamente, a noção de que boa parte das canções parecem “demos” não lançadas de momentos mais inspirados da cantora fica ainda mais forte nos momentos fillers do álbum.

Existe, porém, uma canção que parece um pouco deslocada do resto, pois é nela que todo o conceito temático e sonoro do álbum funciona lindamente: Hollywood. Segundo single do trabalho, a canção é a prova cabal de que a ideia por trás do álbum era ótima, mas ficou faltando o brilho que é colocado na construção grudenta, iluminada e deliciosa dessa fusão azeitada de folktronica, pop rock e dance-pop. Liricamente, a canção é uma reflexão direta, madura e de uma estética pop precisa sobre as promessas vazias da fama e fortuna do sonho americano, partindo da vida em Hollywood. É simples, mas funciona perfeitamente. Outros momentos que funcionam no álbum ficam por conta da balada mid-tempo folk/synth-pop Love Profusion, sobre encontrar paz no amor, a atmosfera acústica de Nothing Fails e, por fim, a deslocada Die Another Day, que foi tema do filme 007 - Um Novo Dia Para Morrer e adicionada ao álbum depois do sucesso comercial da canção.

American Life foi o responsável, na época, por fazer a cantora reavaliar sua direção e realizar seu último grande comeback comercial e artístico em Confessions on a Dance Floor. No próximo e último post do especial sobre a carreira da Madonna, irei falar sobre o primeiro álbum de sua atual fase, que fez Madonna fazer o que nunca havia feito até aquele momento: seguir tendências e não criá-las.


Nenhum comentário: