Kendrick Lamar
Poucos artistas podem se dar o luxo de depois de cinco anos lançar um álbum duplo de mais de uma hora de duração na era que para fazer “sucesso” é necessário ter canções relativamente curtas para serem virais de mídias sociais. E mais: lançar um álbum com uma profundida gigantesca que realmente tira o tempo para fazer crônicas reflexivas sobre a nossa sociedade e como vivemos nela. Obviamente, Kendrick Lamar chegou a um ponto da sua consagrada carreira que é capaz de fazer o que bem entender artisticamente, mas ainda apresenta certa surpresa notar o sucesso comercial de Mr. Morale & The Big Steppers em uma era de sucessos descartáveis e superficiais. Em questão de qualidade, o impressionante trabalho é o mais ousado sonoramente da carreira do rapper e, principalmente, o álbum que se mais aprofunda no intimo sobre quem é Kendrick Lamar.
Antes de começar as jogar os louros é necessário dizer o problema de Mr. Morale & The Big Steppers: a sua “perdida” na sua segunda parte. Divido em duas partes, a metade intitulada Mr. Morale perde levemente o gás que é criado pela parte nomeada como Big Steppers. Não é algo exatamente muito perceptível, mas cria certo ruído com a fluidez do álbum como um todo. É como se a primeira metade estivesse indo a 100km para depois abaixar para 80km, mesmo entregando momentos de pura genialidade. Acredito que o principal culpado por isso é a longa duração do álbum que dá espaço para alguns momentos de barriga ou/e tropeços. Lamar já entregou álbuns longos (To Pimp a Butterfly tinha cerca de uma hora e oitos minutos) que não tiveram esse erro. Entretanto, isso é ponto pequeno diante da grandiosidade e complexidade que Mr. Morale & The Big Steppers apresenta do começo ao seu fim, especialmente no seu conteúdo lírico.
Lamar continua a sua exploração, expiação e contemplação sobre a vida de um homem negro na nossa sociedade de maneira sempre relevante, devastadoramente honesta e lindamente bem escrita. Dessa vez, porém, o escopo de assuntos que o rapper trata é sem nenhuma dúvida o seu mais abrangente até o momento, falando sobre temas como infância, os traumas que passam de geração para geração, infidelidade, religião, cultura do cancelamento, fake news, paternidade, pressão da fama, identidade de gênero. Complexo para dizer o mínimo, Mr. Morale & The Big Steppers é de uma inteligência no momento que deixa claro que todas as letras são reflexões saídas diretamente das experiências de vida do rapper que em nenhum momento que se mostrar como o senhor da razão ou que as suas palavras sejam vistas com apenas um desabafo. O rapper quer fazer o seu público refletir com as suas próprias ideias ao levantar tópicos que normalmente não são falados dentro da cultura rap/hip hop. E o rapper não tem medo de colocar o dedo da feridade de maneira agressiva e sem meias palavras. O principal momento disso é na extraordinária Auntie Diaries.
É notório e de conhecimento geral que o rap/hip hop é ainda um meio historicamente LGBTQIA+fóbico. As condições vêm mudando nos últimos anos, mas ainda é claro a existência desse tipo de descriminação com o sucesso de nomes como Franck Ocean e Lil Nas X. Entretanto, ainda é um pouco raro de ouvir nomes famosos e heteros saírem em defesa ou/e discutir esse assunto em entrevistas e, principalmente, em suas canções. Sinceramente, o único que nesse momento vem a mente é o Jay-Z em Smile do álbum 4:44 em que a sua mãe se assumiu lésbica. Em Auntie Diaries, Lamar usa dessa mesma premissa ao falar sobre o seu entendimento de seu tio ser um homem trans. Obviamente, a composição é de uma profundida extrema ao relatar sobre como o rapper compreendeu e, depois de muitos erros e reflexões, conseguiu compreender toda a complexidade do assunto. Assim como várias composições em Mr. Morale & The Big Steppers, a canção soa como uma confissão/relato/crônica sobre as experiências de Lamar e não uma história com moral definida. Auntie Diaries é a história e um tio e sobrinho que, apesar de diferentes, conseguiram se respeitar e admirar mutualmente devido ao fato de colocarem o amor como principal guia de direção para entendimento. E aí que fica até claro o motivo do rapper usar termos considerados ofensivos na composição, pois a canção não é sobre exaltar esse pensamento preconceituoso e, sim, mostrar sua jornada como pessoa que usava esse termo ou confundia os pronomes do tio para chegar no seu atual entendimento. Claro que não tiro a razão de muitos poderem achar ofensivo, mas, na minha concepção, é necessária entender o contexto e onde a letra nos leva para uma reflexão poderosa vista nos últimos versos:
You said "Kendrick, ain't no room for contradiction
To truly understand love, switch position
'Faggot, faggot, faggot,' we can say it together
But only if you let a white girl say 'Nigga'"
Esse é o modus operandi lírico e temático do álbum. Colocado com um bônus, mas que merece ser considerado com um dos melhores momentos do álbum, a genial The Heart Part 5 é “uma magistral e urgente crônica sobre o que é ser um homem negro na nossa sociedade” que continua a sua épica saga começada em 2010. Toda essa imensidão de reflexões não teriam o mesmo impacto sem a impressionante e magistral produção que transforma Mr. Morale & The Big Steppers no trabalho mais desafiador da carreira de Kendrick Lamar.
Acredito que a sonoridade ouvida aqui é a mais experimental da carreira do rapper e isso diz muito devido ao fato que nenhum dos trabalhos da sua carreira foi um “passeio no parque”. Entretanto, Mr. Morale & The Big Steppers é o álbum que mais busca uma identidade que quebre até mesmo com as regras que o próprio Lamar construiu ao longo dos anos. Nem sempre isso é compensado com uma canção da mesma genialidade das ideias propostas, mas, queridos leitores, quando a produção acerta no alvo, o álbum explode para a estratosfera como é o caso de We Cry Together. Uma hip hop, poesia, jazz, experimental que é uma verdadeira conversa/briga entre um casal, mostrando todos os lados de uma relacionamento conturbado que dá um passo em direção a pura genialidade com toques inesperados de art pop devido ao uso do sample de June do Florence and the Machine. Tudo é elevado ainda mais devido a performance nua e crua de Lamar e a presença avassaladora da rapper e atriz Taylour Paige. Esse lado experimental que quase esbarra no improviso do jazz é perfeitamente ouvido na genial abertura do álbum com United in Grief com um instrumental imprevisível e sempre explosivo. Logo em seguida, o álbum entrega a incisiva N95 em que Lamar mostra como fazer uma canção trap que saia do totalmente do lugar comum para entregar uma extraordinária explosiva canção. E, obviamente, para segurar todo esse peso, Lamar continua a ser um deus do rap ao não perder força, urgência, relevância e grandeza em nenhum segundo sequer, mostrando também uma versatilidade quase ilimitada. Ao escutar o álbum vou anotando quais canções de destaque que merecem ser discutidas ou/elogiadas como destaque durante a resenha, mas dessa vez anotei praticamente o álbum inteiro merecedor desse destaque. As canções já citadas como os melhores momentos entre os melhores momentos como a nata da nata. Mr. Morale & The Big Steppers é esse tipo de álbum que merece ser destacado com um todo, pois a sua complexidade sonora, a densidade lírica e temática e o seu escopo performático precisa ser apreciado, discutido e louvado como um todo. E novamente Kendrick Lamar se mostra com um verdadeiro gênio e reclama a sua coroa de rei por direito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário