15 de janeiro de 2023

Antes Tarde do Que Nunca

Love Deluxe
Sade




Existem alguns momentos na história que é possível apontar como o nascimento de um gênero/tendência/movimento. Um exemplo é a canção I Feel Love da Donna Summer de 1977 que é considerada como o marco zero da música eletrônica. Lançado em 1992, Love Deluxe é o quarto álbum da carreira da Sade que continuou a consagração da banda como um dos atos de maior sucesso da época saído da Inglaterra. Analisando trinta anos depois, o álbum também marca uma das bases para o surgimento de um gênero que marcou profundamente os anos noventa: o neo-soul.

Há alguns anos atrás usei esse mesmo espaço para falar da trindade de álbuns que são considerados como os pilares do neo-soul: Baduizm da Erykah Badu, Brown Sugar do D'Angelo e Maxwell's Urban Hang Suite do Maxwell. Produzido pela própria banda, o álbum parece reunir as bases do que seria refinado e intitulado como neo-soul não muito tempo depois ao ser uma elegante, inteligente, moderna, profunda e excepcional mistura de R&B/soul com toques importantes de jazz, ambiente, trip trop, pop e rock. Acredito que se formo analisarmos bem mais profundamente Love Deluxe podemos chegar a conclusão que estamos diante de um trabalho neo-soul, mas, ao contrário dos álbuns citados, parece ainda carecer de uma certa ousadia estilística que deu o toque final ao gênero. Existe outro fator extremamente importante aqui que é possível associar o álbum como um percussor do neo-soul é o fato de que Stuart Matthewman, saxofonista/guitarrista/compositor da banda, ter sido peça importantíssima da carreira do Maxwell até os dias de hoje. Então, a influencia do Sade é direta, clara e significativa, mas Love Deluxe não é apenas importante devido a sua influencia e, também, pela sua imensa qualidade.

Quem acompanha um pouco da carreira da banda britânica sabe que a carreira deles sempre foi marcada pela sempre presente e altíssima qualidade de todos os seus lançamentos desde o primeiro com Diamond Life em 1984. Entretanto, Love Deluxe pode ser considerado a magnum opus da carreira da banda. E, na minha opinião, o álbum nem precisaria ser tão excepcional por completo devido a já ter logo no começo uma das melhores canções dos anos noventa: No Ordinary Love. Com cerca de quase sete minutos e meio, a canção é uma celebração de basicamente toda as qualidades concentradas do Sade ao ser uma sofisticada, envolvente, imponente, sensual, suculenta, atemporal e emocional. Uma fusão impressionante de soul, R&B e rock, a canção é o tipo de trabalho que quase não se faz mais atualmente devido a cadencia mais lenta que não tem pressa nenhuma em criar lentamente toda a sua espetacular atmosfera. Melódica e estilizada, No Ordinary Love ainda conta com um lendário clipe em que mostra a vocalista Sade Adu como uma sereia em busca de amor, misturando Splash com A Pequena Sereia. E, claro, boa parte da força de qualquer álbum da banda vem da presença magnânima da vocalista.

Dona de umas vozes mais sensuais da história da música, Helen Folasade Adu, nome de batismo da cantora, é uma força da natureza que parece nunca “soa” para entregar performances magistrais. Existe algo tão distinto na presença de Sade que parece misturar sensualidade, calmaria, elegância, magia e imponência em apenas uma pessoa que a torna quase um ser mítico. Em Love Deluxe, a cantora mostra em estado de graça essa característica de maneira continua e simplesmente brilhante. Acredito que a presença da vocalista também influenciou os artistas da neo-soul, pois essas mesmas qualidades podem ser observadas em nomes importantes do gênero, principalmente a maneira de entoar as canções. Entretanto, Sade sempre será a principal nome a vim na mente ao falar sobre grandes vozes desse segmento musical. Apesar de sonoramente simples ao ser uma balada R&B com base de violão, Like a Tattoo ganha uma vida imensa devido a serena e emocionante performance da cantora que relata de maneira nostálgica e contemplativa o encontro marcante com um estranho que foi capaz de se abrir para a mesma. E, queridos leitores, que letra extraordinária que usa de uma simplicidade gramatical para arrancar momentos de pura genialidade:

He told me sweet lies of sweet love
Heavy with the burden of the truth
And he spoke of his dreams
Broken by the burden

Love Deluxe também brilha nesse quesito de não apenas entregar grandes composições, mas como transitar entre assuntos sem perder a essência e inteligência.

Apesar de ser melhor lembrada pelas músicas de amor, o Sade sempre foram ótimos letristas sobre outros assuntos, especialmente os que envolves os problemas da sociedade. Na impressionante Pearls, a banda narra a história trágica e devastadora uma mulher somaliana em que enfrenta os maiores desafios para apenas sobreviver em busca de uma vida melhor para si e para a sua filha. Obviamente, a canção não é sobre uma pessoa apenas, mas, sim, sobre a vida de uma mulher negra que enfrenta as mesmas batalhas, lembrando que a própria Sade nasceu na Nigeria. A banda também entrega letras sobre problemas mais “urbanos” como na sensacional Feel No Pain. Uma soul/jazz com toques de trip trop, a canção narra as consequências da falta de oportunidades para a população mais pobre e o efeito que isso causa nas suas vidas. E a qualidade lírica fica ainda impressionante quando a banda entrega uma profunda crônica social no mesmo nível que entrega uma sincera e românica canção de amor como na trip trop/R&B Cherish the Day ou na elegante e contida R&B/jazz Kiss of LifeLove Deluxe é uma álbum tão magistral que mesmo que não tivesse influenciado uma geração de artistas, a banda Sade ainda teria entrega um dos melhores álbuns mais importantes e melhores dos anos noventa.


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