Mariah Carey
Décimo álbum da sua carreira, The Emancipation of Mimi vem logo após dois momentos de maior baixa na carreira da cantora: primeiro, o desastre gigantesco que foi o filme e a trilha sonora do filme Glitter de 2001 e a recepção congelada de Charmbracelet de 2002. E para piorar a situação, Mariah teve que enfrentar problemas de saúde causados pelo estresse, disputas com o ex-marido, mudança de gravadoras e, claro, um mercado fonográfico em clara mudança. Com tudo na sua bagagem recente, Mariah começa a trabalhar no novo álbum durante todo o ano de 2004. E a principal marca de The Emancipation of Mimi foi a liberdade artística que a cantora obteve.
Com uma nova gravadora, depois de receber um pagamento gigantesco para “sair” da Virgin Records America, Mariah conquistou, sob a Island Records, uma liberdade imensa para poder escolher com quem trabalhar e qual seria o seu caminho sonoro. E com esse poder de decidir, a cantora começou a trabalhar no que seria o seu novo álbum em 2004. Os rumos que a produção de The Emancipation of Mimi foi tomando resultaram dessa liberdade artística, pois Mariah pôde ir experimentando com as novas possibilidades ao trabalhar com produtores que estavam, naquela época, em ascensão para o mainstream ou nomes já consagrados que trouxeram novos ares para a sonoridade da cantora. Entre os nomes que constam na lista de produção do álbum estão The Neptunes, Manuel Seal, Kanye West, James Wright, Jermaine Dupri, entre outros. E o que realmente trouxeram esses nomes? A modernização da sonoridade da Mariah sem perder, porém, a sua essência clássica de artista.
É preciso apontar que, quando cito modernizar, é modernizar para o que era moderno para o ano de 2004/2005. Então, ouvir The Emancipation of Mimi depois de vinte anos do seu lançamento é perceber que o trabalho é algo que realmente cria do seu tempo, pois é quase impossível que a maioria das canções ouvidas aqui fizessem sucesso comercial atualmente. Entretanto, uma das grandes qualidades do álbum é que sua atmosfera datada não é um detrimento ao ouvi-lo atualmente, pois existe um verniz com que o álbum foi sendo “pintado” ao longo dos anos que o impede de criar esse ranço de velho, e essa é a sua grandiosidade sonora. The Emancipation of Mimi é um trabalho em que a gente percebe a sua suntuosidade em todos os sentidos, mesmo sem ao menos saber do seu contexto.
Essa sensação nítida vem de vários fatores, começando pela escala das produções, até mesmo nas faixas fillers, passando pela imensa variedade de gêneros e estilos e, claro, pela presença magistral e lendária de Mariah Carey. E isso foi dado claramente pela engenhosidade e inteligência que a produção conseguiu dar ao álbum.
Uma das características citadas é a variedade dos gêneros e estilos que compõem The Emancipation of Mimi. Essencialmente, o álbum é um trabalho de R&B/pop que vai sendo incrementado e injetado de texturas, nuances e cores que trafegam entre o R&B contemporâneo, neo-soul, pop soul, hip hop, dance-pop e gospel. Esse caminho, porém, não era novidade para a carreira da cantora, pois a mesma foi uma das pioneiras e precursoras, dentro do mainstream, na introdução de elementos desses gêneros na sua base sonora. Todavia, o que acontece aqui é que a produção trouxe a Mariah um reflexo da sonoridade que estava sendo feita por outros artistas daquela época, mas, felizmente, refletindo a própria persona e essência da cantora. E isso é chave para entender a qualidade do resultado final.
The Emancipation of Mimi apresenta uma Mariah que tinha todos os elementos da diva que marcou mais de uma década antes o mainstream mundial, mas renovada e revigorada para o seu público e, também, para um novo público. Essa era é a que mais se aproxima, na carreira da Mariah, das reinvenções da Madonna. E isso também ajudou a melhor percepção da cantora, especialmente se comparada com os dois lançamentos anteriores. Apesar da lista de produtores já citada, é importantíssimo afirmar que quem deu a cara principal para The Emancipation of Mimi foi a presença do produtor Jermaine Dupri.
Apesar de já ter trabalhado naquela época algumas vezes, sendo a mais importante e conhecida como produtor e compositor de Always Be My Baby em 1995, Dupri impõe a sua marca aqui ao moldar toda a sonoridade do álbum ao produzir as principais faixas, sendo aquelas que não apenas foram os maiores sucessos, como também aquelas que formam a base de sustentação do processo criativo do trabalho. E essa presença criativa do produtor refletiu primordialmente a sua experiência na época, com foco especial na sua triunfal parceria com Usher, que foi responsável pela criação de outro arrasa-quarteirão dos anos dois mil, Confessions. Na verdade, a sonoridade que o produtor criou na época é, basicamente, a cara do mainstream do R&B desse período de tempo, ao ser uma fusão refinada e estilizada com elementos do hip hop, rap, neo soul e pop. Isso criou uma sonoridade muito própria da época que atualmente não tem tanto impacto, mas que é um referencial até nos dias de hoje devido à sua importância. É bem fácil notar as principais características dessa sonoridade logo na canção que foi o primeiro single e, também, que abre o álbum: a efervescente It’s Like That.
A canção pode-se dizer que foi o abre-alas para a nova fase da carreira da Mariah, pois, apesar de ter chegado “apenas” à posição de número 16 na Billboard, foi a responsável por apresentar perfeitamente e brilhantemente a sua nova faceta. A cantora, que nunca foi exatamente conhecida por fazer canções puramente dançantes, entrega em It’s Like That a sua mais explosiva, empolgante e, claro, dançante faixa, ao ser uma mistura radiante de R&B e hip hop, criando uma batida extremamente marcante e distinta para a discografia da Mariah. Todavia, a canção poderia ser um tiro no pé se a produção de Dupri não entendesse a essência da cantora, mas, felizmente, a inteligência criativa do produtor, ao lado da própria Mariah, que assina como co-produtora, faz com que a canção encontre o seu lugar, ao deixar claro que é de uma nova Mariah, mas ainda é a Mariah. Com vocais poderosos e uma persona perfeitamente divônica, a cantora imprime a sua marca de uma forma inconfundível. Outro grande ponto que faz a faixa ser lendária é a construção narrativa que a mesma traz para si e, também, para a canção seguinte, dentro da música e fora dela também.
It’s Like That é o canto de liberdade da Mariah literalmente, pois, na sua composição, a mesma clama:
Cause it’s my night (Yeah)
No stress, no fights
I’m leavin’ it all behind
No tears, no time to cry
Just making the most of life
E isso é claramente uma mensagem para que as pessoas saibam que a era de dramas que a mesma enfrentou anos antes está para trás e agora é hora de uma nova era. E a atmosfera do clipe também é de celebração, pois mostra a cantora celebrando a vida em uma festa em uma mansão com dezenas de convidados. Todavia, existe uma “história” por trás, em que a festa seria para celebrar o casamento da Mariah com o dono da mansão, mas, ao final do clipe, um ex-namorado aparece, criando um gancho para ser concluído no próximo videoclipe do próximo single. E aí que entra o toque de gênio, pois decidir fazer o primeiro single seguir uma linha narrativa com o próximo single ajudou a construir esse começo de era como algo excitante e inovador para a carreira da cantora. E isso também funciona perfeitamente dentro do álbum, pois começa com a explosão de It’s Like That para continuar com o sentimentalismo de We Belong Together. E é quando The Emancipation of Mimi atinge seu ápice em todos os sentidos.
Acredito que antes do lançamento, Mariah e a sua equipe tinham noção clara do potencial da canção, mas também acho que não tinham noção do quanto a canção iria repercutir. Um dos maiores sucessos da história da música, o segundo single do álbum é uma das canções mais triunfais que uma artista lançou, criativamente e comercialmente. Na época, se tornou a canção que mais ficou em primeiro lugar na Billboard por quatorze semanas seguidas, feito que durou mais de quinze anos, vendendo cerca de 7 milhões de cópias. Além disso, a canção venceu os Grammys de Best R&B Song e Best Female R&B Vocal Performance e outras dezenas de prêmios. Obviamente, todo esse sucesso fez de We Belong Together uma das canções assinatura da Mariah, mas isso também é devido à sua imensa qualidade, tornando-se uma canção atemporal.
É preciso apontar que a canção é a que melhor traduz a essência da Mariah com a sua nova faceta sonora, ao ser uma power balada R&B, mas também ter um instrumental que moderniza a batida para algo levemente up-tempo, com influência do R&B contemporâneo e do neo soul. E isso faz da canção um trabalho da Mariah e, ao mesmo tempo, uma versão atualizada da cantora até hoje, criando uma pérola raríssima e atemporal. Todavia, não é só da produção que a canção tira a sua imensa genialidade, mas também da sua sensacional e icônica composição.
Ao falar sobre a dor de um fim de relacionamento enquanto deseja que tudo volte a ser como era, Mariah não foge de certo padrão das suas mais icônicas baladas, mas é a maneira como a mesma escreveu ao lado de Dupri e Johntá Austin que é o grande destaque. We Belong Together tem uma letra que consegue equilibrar grandes arroubos de sentimentalismo com um verniz narrativo e com adições ousadas à escrita da Mariah. E a maior delas é a inclusão de “samples” líricos ao citar duas canções de outros artistas no segundo verso:
I can’t sleep at night when you are on my mind
Bobby Womack’s on the radio
Singin’ to me, "If you think you’re lonely now"
Wait a minute, this is too deep (Too deep)
I gotta change the station
So I turn the dial, tryna catch a break
And then I hear Babyface, "I only think of you"
And it’s breakin’ my heart
I’m tryna keep it together, but I’m fallin’ apart
Apesar de ser uma letra genial em todos os momentos, o segundo verso é, na minha visão, o suprassumo da inteligência por trás da canção, ao conseguir ser ousada sem perder o sentimentalismo, sendo também divertida, inesperada e uma reverência a outros artistas do gênero. Continuando o álbum e a sequência de sucessos, The Emancipation of Mimi surge com a canção mais divertida sonoramente, a deliciosa Shake It Off.
A canção tem como marco ter sido barrada de chegar ao primeiro lugar por We Belong Together, fazendo Mariah ser a primeira mulher a ocupar simultaneamente os dois primeiros lugares da Billboard. Uma inusitada produção, devido à sua cadência sonora e ao instrumental que mistura R&B, funk e soul, Shake It Off tem uma das letras mais interessantes do álbum, ao fazer Mariah mostrar uma versatilidade única devido à maneira como a letra é construída, misturando o cantar com algo que mais se aproxima ao rap. E é aqui que chegamos ao outro ponto importante de The Emancipation of Mimi: a presença extraordinária da Mariah. Obviamente, naquele ponto todos eram cientes do poder vocal da cantora, mas aqui é a volta triunfal da artista, por voltar a usar todo o seu potencial de alcance e versatilidade, deixando de lado o “sussurrar” que tinha adotado com mais ênfase nos álbuns anteriores. Em Shake It Off, por exemplo, apesar de ter esse lado mais falado, a cantora também deixa claro todo o seu potencial, especialmente no clímax final sem, felizmente, exageros irritantes. E todo o seu poder é ouvido logo em seguida com a power balada Mine Again.
Novamente como We Belong Together, a canção é uma balada que está na zona de conforto da cantora, mas que é envernizada de uma maneira a fazê-la soar diferente, ao despir-se de grandes arranjos para um instrumental mais “simples” e com influência de jazz. Todavia, essa balada pop/R&B é o veículo para Mariah provar que ainda é capaz de ser aquela Mariah do “antigo testamento”. É interessante notar que, apesar da sua titânica presença, o único problema de The Emancipation of Mimi é a presença um pouco excessiva de participações especiais.
Na verdade, não é nem exatamente as participações em si, mas o contexto delas que deixa um certo gosto de repetição. Das quatorze faixas da versão original, quatro têm a presença de cantores/rappers em faixas de temáticas parecidas de flertes/paqueras com toques sensuais. E isso poderia ter sido evitado, mas, felizmente, as canções são bons/ótimos trabalhos que funcionam dentro do contexto do álbum e, claro, para a construção da imagem daquela Mariah. Entre essas faixas está a deliciosa Get Your Number, com a bem-vinda influência da disco em sua base R&B/dance-pop, que tem a presença “oficial” do Jermaine Dupri entoando o refrão. Outros momentos que preciso destacar são a vintage pop soul da balada Circles e a faixa que fecha o trabalho, a gospel/R&B contemporânea Fly Like a Bird. Também preciso citar Don’t Forget About Us, o single da versão deluxe do álbum, que é uma das canções mais subestimadas da carreira da Mariah que chegaram ao primeiro lugar da Billboard. The Emancipation of Mimi é um marco não apenas para a carreira da Mariah, mas para a música contemporânea, que, depois de 20 anos do seu lançamento, ainda tem sua relevância devido, principalmente, ao imenso talento envolvido em todas as instâncias.


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