Adriana Calcanhotto
Ao menos para mim parece existir uma ideia por muitos que o melhor momento da história musical no Brasil aconteceu entre os anos 1960 e 1970, especialmente alimentado pela mudança cultural e social que aconteceu nesses anos. Entretanto, existe toda uma coleção de álbuns geniais e importantes que foram lançados nos anos 1980 e 1990 que precisam ser melhor lembrados e exaltados. E esse é exatamente o caso de Senhas da Adriana Calcanhotto.
Lançado em 1992, Senhas foi o segundo álbum da carreira da cantora/compositora e o responsável por consolidar a sua carreira definitivamente com o grande público, especialmente devido ao desempenho nas paradas dos dois singles impulsionados pela presença em trilhas de novelas da época. Apesar disso, o álbum parece meio que esquecido pelo consciente popular devido alguns motivos. Primeiro, a carreira da Adriana teve dois importantes momentos de reinvenção/sucesso anos depois que meio que ofuscaram essa fase com o sucesso da regravação de Devolva-me de Leno e Lílian em 2000 e o projeto voltado ao público infantil no álbum intitulado Adriana Partimpim com o sucesso da regravação Fico Assim Sem Você do Claudinho & Bochecha. Em segundo, Adriana nunca alcançou um estrondo imenso como a Marisa Monte que surgiu na mesma época, “rivalizando” em estilo e agregando o mesmo público. Outro ponto menor é o fato da cantora meio que renegar o maior sucesso do álbum e da sua carreira ao avaliar que Mentiras era “a pior do disco, um layout do que poderia ser uma música boa” e, pelas minhas pesquisas, nunca a incluiu em nenhum álbum de gravações ao vivo. Ao contrário de Adriana, aponto Mentiras como a melhor canção em Senhas, mas preciso avisar que o álbum se expande lindamente para outros caminhos que fazem realmente valer a pena o escutar como um todo.
A primeira noção que quem escuta o álbum precisa ter é o fato de que não estamos diante de um trabalho que se limita apenas ao MPB que as canções de maior sucesso sugerem, mas, sim, um rico e multifacetado que transita com estilo entre rock, ska, samba e pop, sendo influenciados pela efervescente cena cultural do final dos anos 1980 e começo dos anos 1990. E apesar de um alcance tão grandes e discrepante entre todos os elementos que poderia desbandar para um desastre desenfeitado de boas ideias atiradas a Deus dará, Senhas apresenta uma coesão simples, eficiente e sóbria que faz com o álbum seja fluido e, principalmente, tenha um senso nítido sobre a sua vontade de “atirar para todos os lados”. E a principal razão para conseguir essa façanha é a própria presença da Adriana Calcanhotto, especialmente devido a sua faceta compositora.
Das trezes faixas do álbum, Adriana escreveu nove delas, sendo seis de autoria solo. E é nesses momentos que o álbum encontra os seus melhores momentos, pois, como uma verdadeira cantora-compositora, Adriana entende perfeitamente para interpretar de forma absoluta cada palavra que escreveu. Claro, aqui não há como não falar sobre Mentiras. A composição é uma poesia devastadora sobre a loucura do fim de paixão em que a cantora usa frases diretas e gramaticalmente simples para elencar todos os sentimentos, contradições, dores, explosões, ciúmes e pensamentos que a dor que uma pessoa que se encontra nessa situação:
Nada ficou no lugar
Eu quero entregar suas mentiras
Eu vou invadir sua aula
Queria falar sua língua
Eu vou publicar seus segredos
Eu vou mergulhar sua guia
Eu vou derramar nos seus planos
O resto da minha alegria
A força emocional que Adriana retira aqui é tão impressionante que encontra na calma e quase melancólica performance da cantora o equilíbrio perfeito para a canção para ficar exatamente na linha entre o descolado e o dramático. Entretanto, apesar de ser uma das melhores, outro momento fantástico e que mostra todo a grandiosidade da compositora da Adriana é o belíssimo samba Tons com participação da Mangueira do Amanhã. Sendo formada apenas por palavras “soltas”, a faixa é uma celebração/reflexão sobre a vida urbana em época do carnaval em que o confeite se encontra com a pobreza e a hipocrisia com a diversão. Serei sincero e admitir que essa interpretação é minha, pois uma canção com essa é difícil de ter apenas um sentido definido. E isso mostra a qualidade da escrita da Adriana que tem a possibilidade de criar várias significações para uma letra formada basicamente de apenas palavras sem ligação aparente que são entoada uma atrás da outras. E essa consciência social se mostra novamente em Negros que novamente conta a participação da Mangueira do Amanhã e sample de Aquarela do Brasil em uma mistura excitante de samba, MPB e soul em que a cantora realiza uma critica sobre como a questão racial é vista no Brasil:
Os negros na cozinha
Os brancos na sala
A valsa na camarinha
A salsa na senzala
A música dos brancos é negra
E esse lado critico de Adriana era algo que devido ao meu conhecimento superficial da cantora era algo que realmente não conhecia. No abre-alas o álbum, a pop rock Senhas que dá nome ao trabalho que a cantora dispara: “O que eu não gosto é do bom gosto/ Eu não gosto de bom senso/ Não, não gosto dos bons modos”. Mesmo com momentos bons que envolvem canções de outras pessoas, especialmente O Nome da Cidade composta pela Caetano Veloso, Adriana encontra o seu lugar quando a sua doce e marcante voz encontra as suas próprias palavras, pois é possível sentir perfeitamente toda a conexão entre a cantora e as suas composições. Outros momentos importantes do álbum são o outro grande sucesso da época em Esquadros e a sensual e ácida Água Perrier. Trinta anos do seu lançamento, Senhas é uma das pérolas mais brilhantes da história da música brasileira que precisa ser reverenciada como tal, especialmente devido ao talento da Adriana Calcanhotto.
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