14 de novembro de 2021

Primeira Impressão

Trava Línguas
Linn da Quebrada



A ascensão e popularização dos serviços de streamers nos últimos anos é uma das razões que artistas que nunca poderiam ter chances de chegar nem perto do grande público pudessem ter como mostrar o seu trabalho. Principalmente, artistas vindos de partes da sociedade que sempre foram marginalizados e excluído a nichos sociais podem expressar de certa forma livremente os seus pensamentos e encontrar o seu público. Ouvir Trava Línguas, segundo álbum da Linn da Quebrada, é uma prova cabal desse novo alcance que a tecnologia provem para artistas que talvez seriam enterrados no “underground”. E tudo fica melhor quando se termina de escutar o álbum e constata a sua avassaladora potência sonora em um caldeirão de gêneros cozidos a quase perfeição.

Se denominando em entrevistas como “bicha, trans, preta e periférica”, Linn da Quebrada teria tudo para não ter esse espaço, mas, felizmente, a artista encontra o seu lugar de forma ao misturar todas suas referencias que navegam do carimbó, música de origem africana, música latina, brega, pop dos anos oitenta, MPB, eletropop, EBM, samba e soul. Essa profusão de gêneros e estilos poderiam se chocarem a 100km/h e cria uma explosão se sentido e completamente caótico. Felizmente, Trava Línguas é o tipo de caos que faz sentido especialmente devido a força artística que é coloca por trás de cada canção. Na verdade, o álbum é o que posso chamar de melhor tradução do que art pop brasileiro, pois é possível perceber essa construção que se equilibra perfeitamente entre o mundano, o celestial, o urbano e o artístico no seu sentido mais refinado. Grandioso e, ao mesmo tempo, extremamente pessoal. Delicado, mas sem perder o dedo enfiado na ferida do patriarcado branco. Passagens poéticas encontram momentos de pragmatismo desconcertante sem perder a sua força emocional. Trava Línguas é um manifesto imperfeitamente perfeito que guarda pequenas joias a cada nova faixa. E tudo começo com a espetacular amor amor.

Lembro de escutar pela primeira vez a canção ao começa a minha pequena jornada de escutar Trava Línguas e ser invadido por uma sensação de eletricidade quase impossível de controlar. Uma envolvente mistura de carimbó e influências de canções de religiões de matrizes africanas, amor amor mostra que o álbum que se segue é uma louvação misturado com reimaginação da música nacional. E Linn não se estabelece em apenas um nicho, pois o álbum é uma galeria de quadros da mais variadas referencias traduzidas pela personalidade incisiva da cantora. I míssil é um dos momentos geniais do álbum e deve entrar fácil entre as melhores canções de 2021 “é uma construção melódica e deliciosamente elegante de mais de cinco minutos que traz referencias de atmosferas de uma sonoridade dos anos oitenta da MPB como a Mariana Lima que remete também a trabalhos de nomes notórios do atual cenário indie/art pop como, por exemplo, FKA twigs”. Em cobra rasteira, a atmosfera parece ter saído de um filme de soft porn dos anos noventa, mas regado por verniz electropop e pinceladas de brasilidade inspiradora. E é aqui que Trava Línguas ganha essa merecida alcunha de art pop ao se render de maneira inesperada e sensacional para uma sonoridade electro/EDM/dance em uma verdadeira aula de como fazer pop no Brasil.

Complicado dizer que a Linn da Quebrada faz pop, pois a segunda parte do álbum funciona como espécie de festa da cultura queer underground que remete a experimentações que deram vida a música eletrônica nos anos setenta, oitenta e noventa. pense & dance é uma acachapante mistura de EDM com toques de jazz, rap, poesia e samba em que a cantora entrega momentos perfeitos para dançar na rua em dias de carnaval quando o mundo voltar ao “normal”. Dona de lírica tão única que mistura delicadeza sentimental e o corte de uma navalha afiada, Linn entrega momentos de pura genialidade na explicitamente desafiadora mate & morra. Falando sem pudor sobre sexo e a erotização do corpo trans e negro, a cantora entrega esse verso desconcertante:

Mate em você
Macho, branco, senhor de engenho, colonizador, capataz
Que pensa estar sempre à frente
Mas vive para trás

Linn continua com essa mesma força descomunal na sombria e poderosa eu matei o Júnior com a presença de Ventura Profana. Uma mistura de electropop com rock, a canção é o tipo de canção que parece saído de um artista internacional como, por exemplo, Rina Sawayama, mas é recado com a personalidade única da artista que a transforma em um manifesto sobre ser quem é. O álbum termina com a poética quem soul eu que soa como se fosse um trabalho do Tom Zé em versão remix EDM. Outros momentos de destaquem ficam por conta da cativante Onde e a delicada balada tudo. Não vou afirmar que Trava Línguas é um trabalho perfeito, pois existe alguns momentos menos inspirados que travam a parte do meio do álbum. Todavia, a força emocional que Linn da Quebrada coloca em cada momento é algo que precisa ser sentido como um dos momentos imperdíveis de 2021. E, principalmente, deve ser celebrado por ser a continuidade da elevação de um nicho que não tinha voz nos últimos anos.

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