3 de janeiro de 2021

Primeira Impressão

Róisín Machine
Róisín Murphy



Uma das coisas que me fazem continuar com o blog mesmo com todos os problemas é o meu amor pela música, especialmente quando deparo com um trabalho que não apenas atiça esse “fogo” dentro de mim, mas, também, o acalanta com mimos da mais pura genialidade sonora. Em um ano como 2020 que surgiram vários momentos impressionantes, nenhum deles chegou perto o suficiente para derrubar todas as portas dos meus “sentidos” sonoros como aconteceu com o fenomenal Róisín Machine, quinto álbum da carreira da lenda escocesa Róisín Murphy. Um combustível de foguete feito para alimentar os meus motores por mais um ano sem parar para reabastecer. E, queridos leitores, ouvir o álbum entrou no top 5 de melhores experiências musicais que tive na vida e, sinceramente, espero que a minha resenha possa fazer jus ao transe que entrei nessa jornada cósmica proporcionado pela dona Róisín.

Na teoria, Róisín Machine não passa de um dos álbuns em 2020 que seguiram a tendência de ressuscitar a disco music em forma de post-disco/nu-disco. Todavia, o resultado na prática é absurdamente diferente, pois a produção de Richard Barratt transforma o álbum em uma viagem transcendental ao passar por gêneros como, por exemplo, electropop, house, EDM, techno e pop alternativo. E a palavra viagem é a que melhor se encaixa na construção elaborada, intricada e surpreendente do álbum. Não acredite que devido a ter tantos gêneros na sua constituição que Róisín Machine seja uma jukebox que cada música é diferente uma da outra e que as mesmas funcionam completamente separadas. Imagine um novelo de lã multicolorido em que as cores não são separadas de forma simétrica e, sim, misturadas ao longo da extensão do fio. Ao desenrolar, o novelo vai mudando de forma fluida e gradativa de cores, mas no final tudo faz parte do mesmo emaranhado. Assim que é construído o álbum. As dez faixas vão surgindo de forma natural, ao mesmo tempo, vão mudando gradativamente de gêneros, batidas e atmosferas sem perder, porém, a coerência e coesão ou sem gerar nenhuma quebra brusca de estrutura. E tudo começa com um começo apoteótico. 

Com cerca de oito minutos e meio, Simulation é uma genial e hipnotizante house/techno que funciona com um glorioso abre-alas que trabalha como aquela viagem psicodélica de barco na versão original de A Fantástica Fábrica de Chocolate, levando quem está ouvido para começar a desbravar o estranho e maravilhoso mundo da Róisín Murphy. Apesar de poucos versos, a canção define muito não apenas a sua existência, mas, também, a experiência geral do álbum no momento em que a cantora declama: This is the realm of my wildest dreams/ These are my wildest dreams. E podem acreditar que essa é a sensação que a gente tem ao ir mais adentro no álbum, pois parece que estamos entrando em um mundo que, apesar de vagamente familiar, tudo é reformulado de acordo com a visão única de uma artista que consegue seguir a moda sem precisar se curvar para regras pré-estabelecidas. 

Róisín Machine é o tipo de álbum que quebre todas as expectativas para logo em seguida ergue-las do chão para serem reconstruídas ao bel prazer da produção. Criando uma atmosfera climática desde o começo, o álbum é estranho na medida certa para separa-lo da massa. Inteligente ao mostrar força criativa, mas longe de soar pretencioso, afetado ou soberbo. Deixando que as faixas falarem entre si, criando uma coesão impressionante e de uma fluidez perfeita, mas sem deixar de dar para a sonoridade uma versatilidade surpreendente. Continuando com a estrutura que abre o álbum, a eletrizante Kingdom of Ends aparece para começar a transformar a batida house/techo em algo mais experimental com toques de EDM e leves pinceladas de gospel, abrindo espaço para o começo da descida no post-disco com Something More. “Uma post-disco/eletrônica que parece flutuar em campo de papoulas enquanto nos envolve em uma névoa de riqueza, beleza, melancolia e uma elegante nostalgia”, o single é a guinada precisa para que Róisín Machine se direcione o foco para fazer as regras do nova onda disco serem remodeladas. 

Em Incapable, uma deliciosa nu-disco com soul/funk de verniz, o álbum mostra a sua principal qualidade: o equilíbrio entre respeitar o clássico e atiçar o fogo com a modernidade sonora. Na faixa é possível ouvir um claro apelo mainstream sem precisar ser explicita ou clichê, respeitando a construção de atmosfera já estabelecida. E o equilíbrio é respeitado com a presença da genial We Got Together. Quase sem letra, Róisín parece buscar inspiração em uma mistura de Grace Jones com uma dose pesada de música experimental, funk e toques de eletrônica em um momento que se transforma em um verdadeiro transe musical. E quando a gente pensa que tudo irá continuar na mesma toada, a produção desacelera bruscamente com a transição para Murphy's Law. Erguendo-se como a canção mais comercial e tradicional do álbum, mas sem perder a pitada de ousadia que o álbum usa como base, a canção não apenas se torna a melhor do álbum, mas, também, uma das melhores de 2020. Gostaria de discorrer melhor sobre a mesma nesse momento, mas decidi escrever uma resenha própria que será possível ler logo após esse post. Outros momentos de grande destaque ficam por conta da sensacional funk/post-disco Jealousy, a espetacular e profunda Narcissus e a envolvente Game Changer. Audacioso, único, brilhante, explosivo, épico, longo sem nunca ser cansativo, glorioso, transcendente, esquisito e outra dezenas de adjetivo que ajudam a entender a genialidade de Róisín Machine e, claro, da sua dona Róisín Murphy.


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