19 de fevereiro de 2020

Antes Tarde do Que Nunca

Love.Angel.Music.Baby
Gwen Stefani


Ao contrário do critério que normalmente emprego aqui no Antes Tarde do Que Nunca, hoje não tentarei dar uma lógica que vá além do meu gosto pessoal para a escolha do álbum resenhado. Na verdade, o álbum escolhido já tem algum tempo que estou querendo fazer essa resenha, mas, até o momento, nunca tinha encontrado o momento ideal ou/e algum outro álbum parecia que "precisava" ser analisado antes. Finalmente, sem nenhum obstáculo, é chegada a hora de fazer algo que mais parece uma explanação do que uma resenha, pois tentarei mostrar o motivo de acreditar piamente que o Love.Angel.Music.Baby, primeiro álbum solo da Gwen Stefani, seja o melhor álbum pop dos anos dois mil. Primeiramente, é preciso fazer duas contextualizações: uma da carreira da cantora e a outra sobre a minha relação com álbum. Começo pela segunda.

Em 2004/2005, período de lançamento do álbum, o blogueiro que "vós fala" tinha cerca de quinze/dezesseis anos de idade. A internet ainda era um luxo para poucos, crescendo ainda a passos de formiga, mas estava prestes a estourar de vez no Brasil. A MTV Brasil ainda está bem longe de ter ex-namorados passando vergonha em praias. As rádios eram o nosso Spotify de graça. E, claro, o CD ainda era a principal forma de aquisição de música. Não me lembro exatamente quando adquirir o álbum, mas acho que o motivo tenha sido após assistir o fantástico clipe de What You Waiting For? em algum momento durante férias na casa da minha madrinha. Então, com o seu CD na mão e o meu antigo e amado discman (quem lembra?) comecei a escutar Love.Angel.Music.Baby inteiro por causa de apenas uma canção (o que era comum na época). Felizmente, a experiência foi extremamente compensadora, pois Love.Angel.Music.Baby é um dos álbuns que marcaram a minha adolescência e, por consequência, o meu gosto e entendimento sobre a música, especialmente a música pop. Não lembro, porém, se já tinha conhecimento sobre quem era a Gwen Stefani e o sua já carreira no No Doubt. Aanalisando isso agora é importante salientar que o que a levou a carreira solo é uma parte essencial da qualidade do álbum.

Fundadora do No Doubt lá em 1986, Gwen se tornou obviamente a cara da banda ao longo dos anos, principalmente após o imenso sucesso do terceiro álbum Tragic Kingdom de 1995 e o mega hit Don't Speak. Afundando os dois pés como um símbolo pop ao longo das décadas devido a sua imagem e personalidade, Gwen na verdade nunca foi uma artista pop. Para aqueles que não se lembram ou não sabem, o No Doubt foi um dos nomes importantes para o sucesso do SKA nos anos noventa, estilo de mistura rock com reggae. E mesmo com o amadurecimento ao longo dos anos, a banda apenas adicionou gêneros e estilos ainda presos em um nicho como punk, dancehall, rock alternativo e new wave. Todavia, apesar da carreira bem-sucedida, a figura da Gwen sempre se sobressaiu do grupo, criando uma imagem sua desvinculada dos outros membros. Então, no final dos anos dois mil, a cantora começou a dar sinais de querer se aventurar em outras "bandas", especialmente ao participar da canção Let Me Blow Ya Mind da rapper Eve em 2002, alcançando o segundo lugar na Billboard. Não demorou muito para que a mesma anunciasse um hiato no No Doubt e a sua carreira solo. Love.Angel.Music.Baby foi lançado em começo de Novembro de 2004. E o seu resultado é ligado diretamente com a história e a bagagem que Gwen trouxe para o trabalho.


Diferente de outras divas pop, Gwen estava bem longe de ser uma novata na música, mesmo que fosse a sua primeira vez no mundo pop de forma completa. Aos trinta e cinco aos de idade e com quase vinte de carreira, a cantora já tinha uma experiência consolidada na música, uma cadeia de influências rica e complexa e ligações profundas com nomes importantes de todos os tipos. E, diferente de qualquer novata lançada na época, Gwen já tinha um público que, devido as suas características, apresentava uma diversidade bem grande. Basicamente, a cantora tinha tudo para fazer sucesso comercial, não importando o qual tipo de música que a mesma entregaria no seu primeiro trabalho solo. Claro, o pop foi o caminho relativamente mais fácil, mas a cantora não seguiu um caminho tão descomplicado como se poderia imaginar. Primeiramente, o pop apresentado em Love.Angel.Music.Baby tem uma complexidade sonora bem mais intensa que o mesmo que estava sendo apresentado naquele quase meio de década. Em segundo, as escolhas feitas para dar essa complexidade foi caminhar perigosamente entre a linha do original e a cópia ao fazer um álbum que remete diretamente aos grandes nomes do pop dos anos oitenta/noventa, principalmente o da Madonna. O que deu o equilíbrio necessário para não desandar foi a corajosa escolha de produtores que deram vida para Love.Angel.Music.Baby.

A cantora convocou para trabalhar no álbum uma equipe de nomes que equilibrava o conhecido pela artista e o novo em relação a sua experiência com os mesmos. Se de um lado estava a presença de Tony Kanal, parceiro da cantora no No Doubt e ex-namorado, do outro tinha o já consagrado Dr.Dre, conhecido pelos seus trabalhos com o rap/hip hop. No começo do ápice artístico e popularidade aparece o The Neptune ao lado da também dupla Jimmy Jam and Terry Lewis que já tinha no currículo os principais trabalhos da Janet Jackson. E o álbum ainda contava como nomes como Dallas Austin, Nellee Hooper, André 3000, Linda Perry, entre outros. Com essa lista de nomes já dá para perceber que sonoramente Love.Angel.Music.Baby é um trabalho, no mínimo, interessante. E, queridos leitores, interessante é literalmente o mínimo que pode ser dito, pois o trabalho é uma verdadeira obra genial do começo ao fim.

Determinar qual o gênero de Love.Angel.Music.Baby é uma tarefa complicadíssima, mas, depois de tantos anos o ouvindo, posso dizer que estamos diante de um álbum de pop/electropop recheado de uma dezena de outros gêneros, criando uma viagem eclética, frenética e desconcertante que parece como um trem bala sem freios. Tudo começa por uma das minhas músicas preferidas de todos os tempos: What You Waiting For? é um electropop/art pop épica que não apenas dá tom ao álbum, mas, também, deixa bem claro o talento de todos os envolvidos e, principalmente, o alinhamento das estrelas para a criação do álbum. Escrita após um período de crise criativa de Gwen, a canção que foi lançada como primeiro single sem, infelizmente, alcançar o sucesso merecido, ajuda a entender o quanto preciso e a frente do seu tempo foi Love.Angel.Music.Baby.


Cada canção no álbum funciona como um organismo independente e, ao mesmo, conseguindo conversar entre si. Todavia, essa conversa não é visível devido a diversidade de gêneros, estilos e influências que foram utilizados na produção. E, provavelmente, essa escolha é responsável por fazer de Love.Angel.Music.Baby funcionar tão bem, indo contra todas as expectativas já que o público logo de cara entende que a intenção do álbum não é ter uma linha fixa de seguir e, sim, viajar por todas as vertentes do pop possível em menos de cinquenta minutos. E analisando isso com cuidado atualmente é necessário dizer que o trabalho deve ter sido complicado, pois o álbum vai de R&B/hip hop para indie pop para pop rock para electropop para soul e para alguns outros com uma facilidade e fluidez impecável. E mais: existe ainda um imenso leque de influências sonoras que vão desde o new wave dos anos oitenta até toques do pop dos anos sessenta e do pop japonês que ajuda a solidificar a sensação que o álbum é uma colcha de retalhos de luxo. Apenas seguindo essa ideia que um álbum poderia realmente funcionar um começo tão genial como o álbum apresenta: depois da já citada What You Waiting For?, o álbum continua com a reggae/R&B/pop Rich Girl para chegar na genial, mas compreensivamente odiada por muitos, e maior sucesso do álbum Hollaback Girl e sua batida extremamente marcada e incisiva para finalizar com a fofíssima quase anti balada pop romântica Cool. Provavelmente, uma das melhores "aberturas" em um álbum pop, as quatro canções citadas criam uma especie de cavaleiros do pop que deveriam ser usadas como exemplo. Infelizmente, Love.Angel.Music.Baby não é elogios, pois apresenta um erro que apenas vem a luz devido a estarmos em 2020: apropriação cultura.

Uma das bases visuais para a divulgação do álbum foi a cultura pop japonesa, especialmente a vista em Tóquio. Até foi criado o grupo de dançarinas Harajuku Girls para acompanhar a cantora em apresentações e entrevistas. Analisando bem atualmente e, até mesmo naquela época, a decisão mostra não apenas uma apropriação cultural, mas, também, uma visão de superioridade em relação a cultura japonesa. Claro, não acredito que essa tenha sido a intenção deliberada da Gwen, mas não é hoje em dia esse tipo de escolha não deve ser mais aceita de forma normal, pois demonstra uma visão preconceituosa estrutural e antiga que ainda habita a nossa sociedade. E, longe de querer passar o famoso pano, a canção Harajuku Girls pode até ser problemática, mas é um deleite sonoro despretensioso e único. Único também é a característica voz de Gwen que se beneficia disso para conseguir dar personalidade em todas as canções, sabendo, porém, calcular e equilibrar para não perder a mão ao abusar de seu timbre anasalado. Outros momentos que precisam ser citados, mesmo que até os filler mais filler aqui mereçam serem descobertos, ficam por conta da sexy e deliciosa Luxurious, a balada mid-tempo new wave The Real Thing e a poderosa Long Way To Go ao lado do rapper Andre 3000. Apesar do imenso sucesso com mais de 15 milhões de cópias vendidas, a carreira solo de Gwen logo esfriou com o lançamento do segundo The Sweet Escape dois anos mais tarde. O motivo foi que o álbum soava como uma grande tentativa de replicar a magia de Love.Angel.Music.Baby com canções que pareciam mais sobras requentadas. Apesar disso, Love.Angel.Music.Baby tem um lugar especial dentro do panteão pop que deveria ser melhor apreciado pelo público, mas que está em lugar especial dentro meu coração.


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