21 de junho de 2020

Antes Tarde do Que Nunca - Grandes Álbuns Esquecidos

Spirit In The Dark
Aretha Franklin



Pensei em escolher para esse Antes Tarde do Que Nunca um artista negro que ainda não tinha passado por aqui, mas depois de refletir bastante cheguei a conclusão que nada melhor para esse especial sobre a cultura negra nada melhor que a maior cantora de todos os tempos. Obviamente, estou falando da Aretha Franklin. A escolha do álbum, porém, já tinha sido escolhida já faz algum tempo que estava na minha lista, esperando apenas o momento certo. E, queridos leitores, a escolha não poderia ser melhor, pois Spirit In The Dark tem uma mensagem perfeita para os tempos em que vivemos, mesmo que o álbum seja o mais pessoal da carreira da Aretha Franklin.

Quando lançou o álbum em 1970, Aretha Franklin já era basicamente a Aretha Franklin que conhecemos atualmente. E isso foi um feito inacreditável para uma artista que tinha apenas vinte e oito anos. Apesar de ter começado a carreira bastante jovem com cerca de quatorze anos, a cantora só deslanchou aos vinte e poucos anos durante a década de sessenta, vendo o seu nome ser marcado no panteão da música ao final da década com o lançamento do álbum I Never Loved a Man the Way I Love You e, claro, a lendária gravação de Respect. Se a carreira em uma década já tinha sido extremamente agitada com o lançamento de impressionantes dezessete álbuns, Aretha já tinha passado por experiências pessoais que valeriam por uma vida inteira.

Alcançado o sucesso durante a era luta pelos Direitos Civis nos Estados Unidos em que a mesma teve uma importância ímpar, a artista sentiu o baque da morte do seu amigo pessoal e maior nome do movimento Martin Luther King Jr. dois anos antes. Além disso, a cantora tinha acabado de separar do seu marido/empresário Ted White que, apesar de ter sido um dos principais nomes por trás do sucesso dela ao ajuda-la a fazer a transição do gospel para a música secular, era um marido abusivo e com problemas sérios com a bebida. E, digamos, a cereja por cima do bolo era o fato dela estar grávida do quarto filho, sendo de outro homem. É nesse caldeirão que surge Spirit In The Dark, um testemunho de liberdade através da expiação das dores que Aretha carregava em um álbum catártico. 

É necessário dizer que Spirit In The Dark não é necessariamente um álbum que irá apontar diretamente para as dores de Aretha, mas, sim, trabalha isso em claras entrelinhas e, principalmente, na espiritual e sobre-humana performance vocal de Aretha. Logo na primeira faixa, a regravação de Don't Play That Song do Ben E. King, Aretha já deixa bem claro que o álbum é sobre deixar para trás e, ao mesmo tempo, se conciliar com as dores do passado. Na canção, a cantora descreve um amor que para ela deveria ser o seu "viveram felizes para sempre", mas que acabou em uma imensa e dolorosa frustração. Dá para sentir em cada nota a força emocional que a cantora coloca em sua performance que mistura de forma impossível para outras cantoras a raiva de ter que reviver tudo ao simples tocar de uma música o ainda coração quebrado e a coragem de que querer e precisar continuar em frente. E isso não fosse suficiente para arrebatar quem ouve, Spirit In The Dark continua com a interpretação avassaladora de The Thrill Is Gone (From Yesterday's Kiss). Uma atemporal blues/soul sobre o sentimento ambíguo de liberdade que um romance encerrado que, de um lado, ainda há ressentimento e, do outro, há a sensação que existe tudo um futuro pela frente. E, queridos leitores, Aretha entoa a canção como sendo exatamente o que é: uma mulher que entende perfeitamente cada sentimento perfeitamente. Obviamente, as canções parecem como apenas "canções de amor", mas as entrelinhas aqui ficam claras quando se entende um pouco do contexto da época em que o álbum foi lançado.

Como já dito, Spirit In The Dark foi lançado durante a era pela luta dos Direitos Civis e, também, o começo da revolução pelos direitos das mulheres. Por isso, o álbum não apenas é sobre a libertação de um relacionamento, mas, também, sobre a expiação das dores da luta pela igualdade de raça e gênero que Aretha sentia a flor da pele. A cantora não tinha apenas se libertado de um relacionamento tóxico no âmbito pessoal. A cantora começava a se libertar das amarras que a sociedade de forma geral. E esse sentimento de liberdade está expressa na R&B com forte toque de gospel Pullin' em que Aretha parece encontrar algo divino após o se reerguer do chão depois do fim de um relacionamento. Lendo com mais cuidado, a canção também pode ser associada com a esperança de novos tempos depois de tantas lutas em que negros e mulheres teriam os mesmos direitos. Conseguindo ser pessoal e ao mesmo tempo com uma mensagem ampla, a cantora constrói canções de atemporalidade impecável que parece exatamente o que precisamos ouvir. E até mesmo o título do álbum e da sua faixa homônima reflete esse sentimento: Spirit In The Dark não é sobre apenas se sentir para baixo e em estar mentalmente em um lugar ruim e, sim, sobre o processo de sair desse estado para um bem melhor através da fé ou de alguma outra forma. E se a mensagem e a qualidade incomparável da voz da Aretha não fosse o bastante, o álbum ainda é a constatação do imenso alcance artístico da cantora.

Apesar de várias regravações e gravações de outros compositores, Spirit In The Dark apresenta cinco canções escrita pela própria Aretha, sendo quatro delas de autoria solo. Além da canção que dá nome ao álbum, outro momento de destaque que tem a composição de Aretha é a poderosa One Way Ticket sobre a não reciprocidade em um relacionamento em que apenas um parece realmente comprometido. Direta e avassaladoramente verdadeira, a canção mostra um pouco da persona compositora de Aretha que pode até não ser revolucionaria, mas sempre se mostrou lúcida, decida e de uma poética clara e profunda. Talentosa como poucas, Aretha Franklin também foi uma pianista nata e impecável, ficando nítido a sua presença durante quase todo o álbum. O distinto começo de Honest I Do é um dos momentos mais memoráveis da pianista Aretha durante todo o álbum. Outros momentos de destaques do álbum são a soul com inspiração rock When The Battle Is Over, a deliciosamente soul That's All I Want From You e a marcante On No Not My BabySpirit In The Dark, infelizmente, não está entre os trabalhos de maior vendagem da cantora ou os mais lembrados pelo público, mas é uma joia sobre uma artista imortal que estava em momento de auto-descobrimento que serve de inspiração pessoalmente e de forma geral para uma época que precisamos dessa força.

Nenhum comentário: