Little Simz
Grandes parcerias entre artista e produtor não são nenhuma novidade, pois existe uma coleção bem grande de exemplos. Por exemplo, uma das mais conhecidas e celebradas foi a união entre Michael Jackson e Quincy Jones que rendeu a sequência de Off the Wall (1979), Thriller (1982) e Bad (1987). Existe uma grande pergunta, porém, ao se tratar dessas parcerias: a mágica que acontece é devido à união dos dois talentos ou porque um dos envolvidos é o ponto de desequilíbrio ao trazer a sua visão para a colaboração? Em Lotus, sexto álbum da rapper Little Simz, a questão é de certa forma respondida.
Os últimos e espetaculares álbuns da carreira da rapper (Grey Area, Sometimes I Might Be Introvert e No Thank You) foram produzidos por Dean Josiah Cover, mais conhecido por Inflo, criando uma das parcerias mais bem-sucedidas e brilhantes contemporâneas no mundo da música ao entregarem três obras de arte. Na resenha de Sometimes I Might Be Introvert escrevi que “o produtor é capaz de criar uma das mais complexas, suntuosas, intrigantes, ricas e geniais construções sonoras dos últimos tempos ao entregar uma fusão dinâmica, impressionante e vigorosa de hip hop, rap, soul, neo soul, jazz e R&B que consegue ter uma fluidez perfeita entre todas as mudanças e nuances dessa jornada”. Apesar de essa definição ser mais apropriada para o álbum em questão, Inflo tinha realmente essa capacidade de maneira geral ao trabalhar ao lado da rapper, entregando sempre produções realmente impressionantes e de uma qualidade altíssima. Em Lotus, o produtor não tem qualquer participação direta, mas o álbum claramente tem o seu fantasma pairando.
Depois de começar a trabalhar no que seria Lotus ao lado de Inflo, Little Simz jogou fora todo o trabalho feito, pois a rapper entrou em conflito com o produtor devido a questões financeiras que a levaram a abrir um processo contra Inflo, além de cortar relações. Com esse contexto, a rapper voltou à estaca zero para recomeçar a trabalhar no álbum e também encontrar o seu caminho. E aí vem a dúvida: sem essa parceria que elevou o seu material, Little Simz ainda manteria o nível ouvido nos seus últimos trabalhos? E, queridos leitores, a resposta é um grandíssimo sim. Obviamente, a visão de Inflo foi importantíssima para o refinamento da sonoridade da rapper, mas com Lotus fica bem claro que o fator decisivo para isso foi a própria Little Simz.
Para a produção do álbum, a rapper agora conta com a participação do produtor Miles Clinton James, que já tinha coproduzido algumas faixas para a artista. E a escolha não poderia ter sido melhor, pois é fácil perceber que existe uma clara noção do produtor em relação à sonoridade da rapper. Não apenas ele a entende, mas também faz com que a rapper evolua e experimente, refletindo um novo estado de espírito artístico e pessoal. E é também impressionante notar que existe claramente um caminho que continua, pois Lotus não é uma quebra sonora na trajetória de Little Simz. É, sim, uma nova fase em que existem novas cores para o que já era uma explosão impactante. Acho que a grande diferença em relação aos trabalhos anteriores é que a visão aqui é mais centralizada e contida, indo na contramão da epicidade sonora e instrumental que era uma das marcas da produção de Inflo. Não é nem de perto dizer que as canções ficaram menores, pois a produção de Miles continua a dar para a rapper todo o suporte para que carregue a sua força artística. A diferença é que antes a rapper estava em um trem indo a 200 km/h, mas agora ela está em uma Ferrari indo na mesma velocidade. Diferentes veículos, mesma potência.
Lotus é um trabalho que funde lindamente o hip hop/rap com infusões potentes de conscious hip hop, jazz, neo-soul, afrobeats, R&B e post-punk em um tecido intrincado, glorioso e de uma finalização espetacular e lindamente polida. A produção não apenas entende como construir a sonoridade em torno da rapper, mas como entregar de fato o que ela precisa para poder explorar toda a sua potência. E até mesmo quando a faixa não é exatamente o destaque do álbum, é possível ver todo o cuidado e criatividade da criação, como é o caso de Flood, ao ser “uma sóbria, marcada, profunda e inspirada faixa de hip hop com fortíssima e impressionante influência de afrobeats. A canção consegue ser curta (menos de três minutos) e ainda assim explorar todas as possibilidades sonoras que a sua base proporciona, especialmente devido a um instrumental intrigadíssimo. A produção também acerta na introdução das nuances e texturas, mas, principalmente, constrói uma atmosfera perfeita para toda a força da presença poderosa da Little Simz". E o que digo quando estou me referindo à força da rapper, que precisa de tanto cuidado para poder ter a base à altura, é sobre o quanto ela é genial, começando pela sua sempre impressionante lírica.
Como já mencionado anteriormente, apesar de não ter a produção de Inflo, o álbum tem o seu “fantasma” rondando, especialmente no teor lírico, pois é fácil notar que Lotus foi um trabalho de expiação de parte do desapontamento/raiva/frustração do rompimento do relacionamento da rapper com o produtor. Não que todas as composições sejam voltadas para o assunto, mas fica claro que Little Simz usou suas experiências recentes para construir as impressionantes, profundas, emocionais, poéticas, épicas e devastadoras letras que compõem cada uma das faixas. Isso não é nenhuma novidade, pois essa sempre foi uma das características mais pungentes da carreira da rapper. Entretanto, a artista entrega aqui algumas das suas mais refinadas e emocionais composições. E tudo começa já na canção abre-alas Thief.
Com tradução de “ladrão”, a canção pode ser considerada uma diss track em nível bem parecido com Not Like Us, mesmo sem citar o alvo literalmente. Todavia, isso não é problema, já que a composição deixa bem claro, ao ser uma devastadora e raivosa exposição dos sentimentos da rapper, que é claramente misturada com uma dor genuína:
I sit and think, "What did I do?" but that's what abusers do
Make you think you're crazy and second guess your every move
Psychological mental abuse will leave more than a bruise
Will leave more than scars
Apesar de buscar esses sentimentos densos e sombrios, a rapper também é capaz de ir na outra vertente ao ser luz, como mostra a sensacional Free. “A canção é um trabalho tão complicado de ser construído devido a seu teor lírico que o resultado é ainda mais louvável. Falando sobre o poder do amor em nos libertar das amarras do medo, a canção poderia facilmente cair no lugar da autoajuda barata, mas passa longe disso ao ser uma refinada crônica com um trabalho lírico excepcional que reflete o talento da rapper de maneira sincera, inteligente, madura e tocante”. E, claro, para carregar toda essa imensa significação é preciso o que Little Simz é: uma força da natureza.
Para mim, e sem nenhuma dúvida, a britânica é a melhor rapper da atualidade ao lado de Kendrick Lamar, e isso fica novamente claro em Lotus, em que é possível ouvir suas várias facetas e, claro, todo o seu poderio de interpretação. Um dos momentos mais sublimes do álbum é quando Simz entrega uma performance contida e reflexiva na lindíssima Peace, em que a sua presença é contemplada pelas ótimas participações de Miraa May e Moses Sumney.
Ao contrário de alguns álbuns que perdem força na sua parte final, Lotus encontra uma sequência inspiradíssima no encerramento, que começa na devastadora Blood, em que a rapper constrói uma faixa emocional e genial com o também rapper Wretch 32 ao contar a história de dois irmãos com um relacionamento conturbado; segue pela inspirada e inspiradora faixa que dá nome ao álbum, Lotus, com a participação sensacional de Michael Kiwanuka; chega em Lonely, em que a rapper reflete sobre a solidão da criação artística; e termina com a nova parceria com Sampha em Blue.
Nessa nova fase da sua carreira e vida, Little Simz comprova definitivamente a grandeza do seu talento em um álbum que faz jus à sua genialidade.


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