31 de março de 2024

Primeira Impressão

COWBOY CARTER
Beyoncé




O oitavo álbum da Beyoncé é uma odisseia musical. De uma maneira geral, odisseia “é uma viagem cheia de aventuras extraordinárias, é uma narração cheia de peripécias ou ocorrências singulares, variadas e inesperadas”. O poema épico grego que é tirada a palavra é sobre “a luta apaixonada de Odisseu (ou Ulisses, na tradição latina) para retornar à casa depois da Guerra de Troia, e retomar o convívio da esposa e do filho”. E acredito que Cowboy Carter esteja perfeitamente dentro dessa esfera de significação, pois é uma verdadeira jornada sonora inesquecível e imprevisível e, ao mesmo tempo, mostra a jornada pessoal da Beyoncé para as suas raízes ao ressignificar o que é ser uma estrela pop. E, queridos leitores, tudo isso é alcançado de maneira que apenas posso apontar como genial.

Não, Cowboy Carter não é exatamente o melhor álbum da carreira da cantora, pois o posto ainda é na minha opinião para Lemonade. E tenho que admitir que nem necessariamente será o preferido de maneira pessoal. Todavia, esses dois postos ficam bem perto de alcançar devido a descomunal força que é posto para a criação do trabalho. E isso é feito em basicamente todas as frontes possíveis, começando pelo tamanho e duração do álbum. Com vinte e sete faixas e mais de uma hora e quinze minutos, o trabalho é colossal que vai se estendendo e desenrolando ao bem querer da produção, mas que, felizmente, nunca se torna arrastado. Várias vezes já apontei que o tamanho de um álbum era o seu principal defeito e isso poderia ser também o caso Cowboy Carter. O que diferencia aqui é o fato que existe uma razão para ser tão longo e, principalmente, a maneira como é construído essa verdadeira jornada. E essa é uma das maiores qualidades do álbum.

Quando fiz a resenha de RENAISSANCE apontei que para realmente entender o álbum era necessário ter um contexto sobre a carreira da Beyoncé, pois “desde que fez a sua transição artística, a cantora vem explorando gêneros, sons, estilos e estéticas que fizerem a história vindo diretamente de artistas negros. Apesar de sempre presente na discografia da cantora, essa vontade e concretização vem de forma mais nítida desde o lançamento do 4”. Todavia, assim com o primeiro ato dessa era não basta entender sobre o que a cantora fez ao longo dos anos, mas o que a influenciou desde o começo. Não irei aprofundar sobre o motivo do country ser de raízes dentro da população negra assim como outros gêneros, mas é preciso entender que Beyoncé foi desde pequena mergulhada nessa sonoridade assim como, também, a pop e R&B. E, mesmo podendo ser estranho, ouvir a cantora ir por esse lado não deveria ser uma grande surpresa, sendo que no álbum anterior já tinha sido explicado melhor: o resgate.

Assim como RENAISSANCE, Cowboy Carter “é uma celebração da música negra”, mas dessa vez, porém, também é uma forma de como a cantora resgata o devido holofote para country e os seus renegados artistas negros. Para isso, Beyoncé não decidiu apenas fazer um álbum country, mas, sim, um álbum que abrangesse vários todos os tipos de country. E devido a isso é que temos um álbum tão grande, pois o mesmo é literalmente uma viagem ao ir do country tradicional ao country atual, passando por americana ao folk, contemplando subgêneros como country-pop e country-rock até chegar ao country contemporâneo. Todavia, a cantora não quer apenas resgatar a importância negra para o gênero, mas quer também demandar que gênero e estilos musicais não pertencem apenas a uma comunidade de pessoas/artistas. Isso é feito no momento em que Beyoncé começa a experimentar pesadamente com a sonoridade do álbum, criando a sua própria versão do gênero. E, queridos leitores, essa versão é o que faz Cowboy Carter ser essa odisseia inesquecível. E qual é essa versão?

Em Spaghettii, faixa que é usada quase como um divisor de águas no álbum devido a sua posição e temática, existe uma voz off em que ouvimos o seguinte: “Gêneros são um conceito engraçado, não são? (...) Em teoria, eles têm uma definição simples e fácil de entender/ Mas na prática, bem, alguns podem se sentir confinados”. A dona da voz é cantora Linda Martell que é literalmente a primeira mulher negra de sucesso do country com o lançamento do álbum Color Me Country em 1970. Apesar de não ter continuado no gênero, migrando para o gospel, a cantora teve a sua importância reconhecida nos últimos anos depois de um período esquecida. Com essa reverencia importantíssima, Beyoncé mostra que está atenta ao máximo ao passado, mas olhando para o que a mesma entende sobre a versatilidade da música já que a faixa é uma fusão de rap, country e com samples de funk brasileiro Aquecimento Das Danadas do DJ O Mandrake. Acredito que a faixa meio que ajuda a entender o que a cantora quer fazer nessa sua busca ao reverenciar quem fez história e, ao mesmo tempo, deixar extremamente claro que a música é algo vivo em constante evolução, mesmo que exista quem defenda o contrário. Para isso, Beyoncé conta com a colaboração de alguns nomes que meio que pavimentaram a estrada do country. E o maior deles é a rainha do country, a lendária Dolly Parton.

O maior nome feminino do gênero com uma carreira de quase sessenta anos, Dolly é um dos pilares do country moderno, mas também foi uma das primeiras artistas do gênero a cruzar a ponte para outros gêneros como o pop ao deixar uma marca importante em todo o mainstream. A decisão de regravar uma das canções assinaturas da cantora não é exatamente uma surpresa, mas o fato de a reconstruir é algo que realmente não esperava até entender o cerne do álbum. Por isso, essa versão de Jolene é um dos momentos de genialidade pura de Cowboy Carter . Sonoramente, a canção se mantem quase a mesma, sendo adicionada apenas nuances instrumentais que a quase se aproxima de uma country rock e uma extensão levemente gospel ao seu final. Todavia, a letra foi reescrita totalmente para refletir a persona da Beyoncé. A original era sobre o pedido desesperado de Dolly para a tal Jolene não tirasse o seu homem, enquanto Beyoncé é um aviso para que a “furo olha” não chegar perto do seu homem para o “pau não comer”. E a nova composição é tão impressionante tecnicamente que está perto do nível da força original de Dolly. E a intro com a gravação da própria Dolly quando a Beyoncé lançou Sorry é apenas cereja em cima do bolo. Mesmo que aparecendo apenas em intro como um apresentar de radio anunciado as canções, a presença da lenda Willie Nelson apenas valida toda a visão da cantora. Outro momento que demonstra toda a capacidade e intenção do trabalho é na genial Ya Ya.

Provavelmente, uma das canções mais significativas em questão de sonoridade do álbum, a canção celebra todos os artistas que quebraram expectativas e barreiras ao fundir estilos como, por exemplo, Ray Charles, Ella Fitzgerald, Aretha Franklin, Little Richard, The Jackson 5 e Tina Turner ao mencionar o Chitlin Circui que era conjuntos de lugares que davam espaço para artistas negros cantarem durante o período de segregação racial. Na verdade, a canção também reflete essa ideia com a sua sonoridade elétrica, explosiva, dançante e com essa vibe showstopper ao misturar rockabilly, soul, country e R&B. E o uso dos samples de Good Vibrations do The Beach Boys e, principalmente, These Boots Are Made for Walkin’ da Nancy Sinatra ajuda a enriquecer imensamente o resultado final. Liricamente, Ya Ya é a faixa de maior impacto politico e critico do álbum em que a cantora reflete sobre manter a esperança mesmo vivendo em tempos sombrios que tentam, por exemplo, apagar a história negra das escolhas americanas. E apesar de alcançar o ápice com suas experimentações, Cowboy Carter  também acerta plenamente quando segue um caminho mais seguro.

Texas Hold 'Em poderia facilmente ser esse momento já que “ao ser mais pop e animada, a canção é divertida, dançante e tem aquela vibe que dá vontade de dançar quadrilha vestida de marca importadas e de salto alto”, mas Beyoncé também segue outras direções. Bodyguard é uma romântica e sossegada country pop/popr rock que emoldura o que faz nomes como Kacey Musgraves e Maren Morris. A dramática Daughter é uma impressionante americana/country/folk que tem a inesperada e brilhante introdução de opera nos versos de Caro Mio Ben que são entoados de maneira deslumbrante. 16 Carriages tem uma “batida é mais classuda, emocional, poderosa e pende claramente para uma influência soul/gospel. Existe uma força sentimental por trás da construção da canção que é perfeita para carregar a emocionante composição”. A belíssima química entre a cantora e a Miley Cyrus na tocante balada II Most Wanted e a leve sensualidade romântica em Levii's Jeans com a ótima presença do Post Malone mostram a faceta de grandes encontros que o country apresenta, sabendo perfeitamente mirar no lado comercial sem perder qualidade. Outros momentos importantes do álbum ficam por conta da dançante Riiverdance e sua impressionante instrumentalização que reconstrói uma melodia country ao adicionar toques de dance, trap e R&B, a construção complexa da melodia de II Hands II HeavenTyrant e a sua criação de uma batida country hip hop e, por fim, a descomunal e revigorante Sweet / Honey / BuckiinCowboy Carter poderia facilmente ser a consagração de qualquer artista, mas nas mãos da Beyoncé se torna um importante momento de reset cultural como poucas vezes tivemos na indústria da música. E respondendo a própria cantora na colossal canção que abre o álbum em Ameriican Requiem em que mesma diz “It's a lotta chatter in here/ But let me make myself clear (Oh)/ Can you hear me? (Huh)”: sim, Beyoncé, estamos ouvindo claramente e até aqueles que não quiseram escutar serão obrigados.


3 comentários:

Marcos disse...

AOTY Demais. Pqp. A Beyoncé sabe como fazer um álbum bom.bato palmas demais, produção e vocais de outro nível. Maravilhoso.

Marcos disse...

Esqueci de mencionar... Ótima resenha a sua. 👏🏾👏🏾

Jota disse...

Marcos, muito obrigado! Volte sempre!