Amaarae
Logo no começo da faixa Spaghettii, da Beyoncé, a cantora lendária Linda Martell declama: “Gêneros são um conceito engraçado, não são?/ Sim, eles são/ Em teoria, eles têm uma definição simples e fácil de entender/ Mas, na prática, bem, alguns podem se sentir confinados”. E essa é uma das mais profundas realizações e entendimentos para compreender de verdade a complexidade de Cowboy Carter. Em menor grau, mas no mesmo sentido, essa “teoria” é o que precisa estar em mente para entender toda a “maravilhosidade” que a Amaarae entrega no excitante BLACK STAR.
Terceiro álbum da carreira da cantora, sucessor do promissor Fountain Baby (2023), o trabalho não chega exatamente a ser o melhor do ano, mas, sem dúvida, é um dos mais excitantes por ser uma destemida e desbravadora coleção de canções que revelam uma visão única da Amaarae sobre o Pop/R&B. E, queridos leitores, o que a produção faz aqui é, sinceramente, uma aula de como experimentar as possibilidades sonoras de uma artista, utilizando sua base e criando todo um bioma em que se cultivam frutos suculentos, ousados, deliciosos e irresistíveis. É importantíssimo apontar que os gêneros e estilos adicionados para adubar esse solo são decisivos para o resultado final. E o maior trunfo de BLACK STAR é a influência do funk carioca.
É algo polêmico de afirmar, mas acredito que este seja, de longe, o melhor trabalho de uma artista internacional ao usar o gênero brasileiro. Não é apenas em uma canção com produção assinada por um brasileiro que o funk se faz presente; ele permeia o disco inteiro, em doses maiores e menores. Isso também acontece com outros gêneros, como EDM, deep house, dancehall, afrobeat, electroclash, tropical house, entre outros. Todavia, o nosso funk é o que mais empolga, pois, como já disse, é sua fusão contemporânea mais bem-executada até o momento. BLACK STAR, no entanto, não se resume a isso: é uma verdadeira e deliciosa orgia sonora que se desdobra em surpresas a cada curva, mas sempre com fluidez impecável e coesão estética extraordinária, sem soar repetitivo e com um diálogo constante entre as faixas. E é preciso dar os louros a quem merece: o produtor Kyu Steed.
Apesar de trabalhar com outros nomes, ele é o responsável por construir todas as faixas do álbum, criando uma visão clara que parte do entendimento da persona de Amaarae e de sua sonoridade — que, resumidamente, pode ser definida como um avant dance-pop injetado de todos os gêneros citados (e mais alguns). É uma visão ousada e grandiosa, que poderia soar difusa sem uma produção que conseguisse elevá-la a algo palpável e sólido, como acontece em BLACK STAR. Nem todos os resultados são tiros certeiros, mas nenhum chega a ser desperdiçado, criando um álbum que prende do começo ao fim sem vontade de pular uma faixa. E tudo começa com uma das mais refinadas utilizações do funk na ótima Stuck Up.
Com coprodução de Mu540, produtor paulistano com extensa lista de trabalhos ao lado de vários nomes nacionais, a canção se transforma em uma mistura refinadíssima e poderosa de EDM, house e funk carioca, criando um abre-alas tão carismático e suculento que se torna ideal para o que está por vir. Stuck Up é uma aula de como elevar o nosso estilo, sabendo dosar sua presença com a de outros gêneros e respeitando sua essência. O trecho final, quando a canção emoldura um baile funk, é a cereja do bolo: traduz perfeitamente o potencial do gênero. Pena que, com apenas dois minutos e meio, funcione quase como uma “intro”, deixando um delicioso gosto de quero mais. Felizmente, é um gosto que dá vontade de mergulhar ainda mais fundo na fábrica de delícias em que Amaarae nos convida a entrar em BLACK STAR. E sua presença é outro grande acerto, pois não existe nenhuma artista como ela.
Dona de um timbre completamente único, Amaarae consegue sustentar canções que, a princípio, não seriam pensadas para uma voz como a dela. Isso mostra o quanto ela está no controle de seu instrumento e, principalmente, o quanto a produção tem plena ciência de como tirar apenas o melhor. Um dos pontos altos é sua performance avassaladora em S.M.O., uma irresistível mistura de dance-pop, R&B, electro e afrobeats que parece saída de um dos melhores momentos de um álbum do The Weeknd, mas ganha personalidade única com a presença irrefutável e icônica de Amaarae, que domina a faixa com unhas e dentes.
A cantora brilha até mesmo nas colaborações, como na viciante Starkilla, com a presença iluminada de Bree Runway. Aqui também se destaca outra qualidade da produção: o uso certeiro e inteligente de samples, como o de Milkshake, da Kelis. Já em Kiss Me Thru The Phone pt. 2, dois samples são usados de forma inspirada: Thong Song, de Sisqó, e uma interpolação de The Aisle, da PinkPantheress, que também participa da faixa. Outros momentos dignos de nota são a batida marcante e icônica de ms60, com participação de Naomi Campbell — que parece estar se tornando a artista com as melhores colaborações de 2025, depois de sua presença em Every Girl You’ve Ever Loved, da Miley Cyrus — e, por fim, a deliciosa farofada de Fineshyt.
Com BLACK STAR, Amaarae demonstra até onde pode chegar sonoramente e se firma como uma das artistas mais interessantes da atualidade.


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