10 de agosto de 2025

Primeira Impressão

Cancionera
Natalia Lafourcade



O décimo primeiro álbum da carreira da Natalia Lafourcade, Cancionera, é um álbum que apenas uma artista como a mexicana é capaz de entregar, pois existe uma carga tão imensa de amor pela sua própria arte que, nas mãos de alguém menos qualificado, terminaria como raso e indulgente. Com Natalia, o resultado é uma magnífica ode à música, à arte de cantar e, claro, à América Latina e ao México.

Com exatamente uma hora e quinze minutos divididos em quatorze faixas, sendo duas versões acústicas, o álbum nunca fica cansativo ou arrastado devido à sua esplêndida execução e à sua impressionante construção instrumental, melódica e temática. E isso já é algo para ser elogiado, mas Natalia vai muito além ao conseguir entregar em cada momento do álbum algo tão encantador e completo que os transformam em quase pequenos mundos dentro da galáxia que é o álbum como todo. E tudo parte da grandiosidade avassaladora do instrumental que é criado para dar conta de toda a força que é colocada na construção sonora do álbum.

Cancionera é, novamente, a expressão do amor da Natalia com a sonoridade mexicana e da América Latina ao introduzir com perfeição e sabedoria gêneros como bolero, ranchera, cumbia, tango, pregón, rumba, salsa, tropical, entre outros, mas também mostrando sua influência vinda do jazz e folk. É importante apontar que, mesmo adicionando gêneros não exatamente latinos, a cantora, que assina a produção ao lado de Adán Jodorowsky, impregna totalmente e brilhantemente todo o álbum com essa força latina irrestrita e sem concessões, pois cada segundo é uma ode para essa sonoridade e a história da música latina. Tudo isso é plenamente alcançado devido ao trabalho sublime de instrumentação, que chega a ser algo quase divino. Refinado ao extremo, complexo sem parecer pretensioso e sabendo que da simplicidade também sai o brilhantismo, elegante, maduro, profundo, emocional sem ser piegas, sentimental, reflexivo, respeitador e ao mesmo tempo moderno, o trabalho instrumental ouvido no álbum é tudo isso, mas, sinceramente, não consegue abarcar com precisão toda a magnitude que ouvimos durante todo o álbum. E isso já começa logo de cara com a espetacular abertura Apertura Cancionera.

Apenas instrumental, a canção é um trabalho realmente de tirar o fôlego ao conseguir expressar de maneira definitiva toda a aura do álbum em um arranjo marcante, contido e de uma força emocional incrível. Mesmo sem ter uma palavra escrita, a faixa fala muito sobre o álbum em si, mas também sobre a persona artística da Natalia e como a cantora é capaz de dizer muito sem abrir a boca. O feito é literalmente repetido, mas fechando o trabalho de forma inesquecível com a presença de Lágrimas Cancioneras, que não apenas fecha o álbum sonoramente, mas encerra o ciclo temático ao encerrar essa viagem pelo amor que Natalia tem pela sua profissão e pela arte da música. E o começo temático para essa jornada é literalmente na faixa que dá nome ao álbum: Cancionera.

Vestida do seu alter ego chamado la cancionera, a cantora entoa na belíssima, atemporal e de uma beleza melódica devastadora jazz/tradicional ode e celebração à força, à magia, à graça, à alma e ao coração da mulher que decidir, através da sua arte, explorar e expor sentimentos, emoções, vivências e pensamentos. Escrita pela própria cantora, a letra de Cancionera é um deleite lírico devido à sua simplicidade estética, mas que atinge fundo emocionalmente devido à magistral capacidade da mesma em retirar o mais profundo significado de cada verso. E o seu ponto alto é o seu incrível e acachapante refrão:

Cancionera
Canta, canta livre ao vento
Cancionera
Canta sempre a tua verdade
Sê mulher, a bela musa
Sê a estrela de uma vida
Que, ao ver teus passos, se ilumina
Acendendo corações

É preciso apontar que essa qualidade lírica e temática é vista em todo o álbum. E a admiração aumenta ainda mais ao notar que todas as canções são trabalhos inéditos escritos pela Natalia ao lado de alguns poucos parceiros, mostrando a capacidade rara de poder aliar gêneros mais tradicionais com uns toques modernos para trazer as canções para o tempo presente. Em Cocos en la Playa, uma irresistível e deliciosa cumbia, a cantora logo nos primeiros versos dispara em tom leve e convidativo: “Sem maquiagem e sem bagagem / Deixar de lado os calendários / As companhias aéreas, redes sociais”. Entretanto, é quando a cantora quer ser devastadora que vemos a sua lírica mais impressionante, como é o caso da sensacional e climática Mascaritas de Cristal:

Eu não quero ver tua sombra nem teu rosto mais bonito.
Tua loucura é reprimida, me parece uma ficção.
É um drama desmedido habitando aí na tua mente.
Eu quero te ver presente enquanto canto esta canção.

Natalia entoa a canção com uma precisão quase cirúrgica, com a sua voz de timbre melódico e cristalino e sua interpretação de impacto contido, mas de um fio cortante impressionante e devastador. E quando a sua força é aumentada pela participação especial, é algo ainda mais impressionante, como é o caso, por exemplo, da bolero/rumba Amor Clandestino ao lado do marcante Israel Fernández. Outras faixas que merecem ser citadas ficam por conta da sensual Cariñito de Acapulco e a tocante e delicada Como Quisiera Quererte, com a participação de David Aguilar. Cancionera é um relicário nobre e preciso da visão magistral sobre o que é a arte da música para uma artista genial como é a Natalia Lafourcade.


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