30 de agosto de 2015

Primeira Impressão

Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa...
Emicida



Eu quero que você pare agora o que está fazendo e preste atenção no o que vou dizer para vocês: Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, segundo álbum do rapper brasileiro Emicida, não é um bom álbum. Também não é um ótimo álbum ou muito menos um sensacional álbum. Na verdade, Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa é simplesmente uma obra genial como poucas vezes eu ouvi desde que o blog começou há cerca de oito anos. Para que vocês possam desfrutar do álbum como eu consegui é necessário que haja a quebras de alguns tabus e pré-conceitos que, de alguma forma, todos nós temos guardados sobre rap e hip hop nacionais e, principalmente, sobre a posição do negro na nossa sociedade. Começamos pelo mais "trivial": a música.

Estamos, sim, vivendo em uma fase em que o grande mercado da música nacional é simplesmente um grande buraco negro de qualidade em que o grande público aceita a mediocridade afirmando que essa musicalidade é a "representação do povo", mas, na verdade, são todos vitimas de uma "diabólica" campanha de marketing das gravadoras/empresários/artistas que querem enfiar qualquer música que tenha sido feita "pré-fabricada" na lei do menor esforço do que realmente trabalhar para criar algo que, além de ter qualidade, possa realmente expressar sentimentos e emoções verdadeiras. Claro, não sou idiota de acreditar que grande parte da indústria fonográfica não vive de marketing e apenas de talento. Ou vocês acham que a Beyoncé tornou-se quem é apenas pela beleza ou talento ou os Beatles ganharam a sua notoriedade sem a ajuda de aparições na TV ou a Madonna virou Rainha do Pop simplesmente por alguém quis assim. Em nenhum caso citado, e também em relação à grandes nomes da música brasileira, houve uma magia que os tornaram astros da música. Porém, esse marketing serviu para dar suporte para grandes talentos mostrarem os seus grandes trabalhos seja qual o estilo for que eles sigam. Felizmente, existem alguns artistas que conseguem ganhar destaque no mainstream e que fazem algo de qualidade verdadeira ou algo que não seja tão pretensioso, mas, na maioria dos casos, os artistas de sucesso hoje em dia são horríveis em todos os níveis e que fazem sucesso apenas por terem grandes nomes da música por trás (seja um empresário ou um outro artista). Então, por isso, quando um artista com algo interessante consegue quebrar algumas barreiras e tem o seu trabalho ganhando destaque na médio é necessário para quem goste de boa música de verdade dê uma boa atenção. Esse é o motivo que faz Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa um trabalho que mereça a nossa simpatia, pois no meio de um deserto sombrio da música nacional o álbum é um oásis da mais pura beleza.

Em Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa não espere algo tradicional no que tange o hip hop nacional, isto é, uma sonoridade pesada, forte e, por vezes, sombria. O álbum é o resultado de uma imersão profunda de Emicida na cultura africana durante uma viagem para alguns países da África. Por isso, essa viagem na vida real influência a jornada adentro da música africana em toda a sua majestosidade, grandiosidade, beleza, riqueza e sabedoria rítmica que foi construída em milênios de história. Toda essa música é a principal base da nossa música como o samba e forró, então Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa não é apenas uma louvação a música africana, mas também um genial trabalho de música brasileira no que ela tem de melhor. A produção acerta em todos os segundos do álbum com instrumentalizações perfeitas e uma estruturação do álbum incrivelmente coeso em que não há nenhum momento perdido. Não ache, porém, que Emicida perdeu a sua verne rap/hip hop: os dois gêneros estão lá fundidos com toda as cores africanas, mas com a sua atmosfera de urgência dando o norte responsável para criar a personalidade do álbum. Essa personalidade é dada pela consciência de Emicida refletidas em todas as suas composições.

Em uma época sombria em que vivemos no Brasil em que a maioria dos políticos e a mídia em geral faz com que boa parte da população acredite que o problema real é do patamar econômico e político divido entre apenas dois lados, Emicida ajuda a relembrar que o problema é muito mais profundo, complexo e sombrio do que pode-se imaginar: o grande problema é uma parte da sociedade brasileira cada vez mais preconceituosa, intolerante, hipócrita e sem medo de "abrir" com o mundo as suas "ideias" com o aval do anonimato da internet. Em Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa o enfoque é na posição do negro perante a sociedade, mas a maneira tão incisiva, pertinente, inteligente, forte e, claro, realista que de certa maneira serve para todas as esferas em relação aos grupos sociais vitimas de preconceito. Sendo o enfoque o negro, Emicida construí uma edificante e acachapante critica social em relação como a comunidade negra está inserida na sociedade brasileira. Claro, o ponto de vista do Emicida parte do seu "mundo" que é a periferia de São Paulo e, por isso, as composições contem um forte apelo "paulista" e com um viés político e social típico dessa comunidade. Todavia, esse fato não impossibilita que qualquer pessoa negra e/ou pobre não conseguir se identificar com as palavras de Emicida sobre racismo, diferenças sociais, a imagem própria das pessoas negras e outras mazelas enfrentadas pela população pobre do Brasil. Nada disso seria eficiente sem o talento com a palavra que o rapper possui. 

Misturando referências da cultura brasileira e africana com todo um mundo de referências pop nacional e internacional para construir as suas crônicas sem esquecer, porém, "a maneira" sua de falar incluído gírias e forma linguísticas próprias da sua origem. Assim Emicida elabora ricas e complexas teias de significados para expor suas ideias. Tudo isso foi lindamente elaborado não apenas pelos versos do seu rap rápido e rasteiro, mas também pelos ótimos refrões em todas as faixas e em poesias inseridas em algumas faixas que servem como "intro" ou mesmo e faixas normais. Mesmo sendo um trabalho musical e de uma consciência social, as faixas contem uma carga poética imensa alterando entre o tradicional e moderno/urbano com a mesma intensidade. Com tudo ao seu favor, Emicida apenas precisa colocar para fora tudo o que está dentro de si para carregar cada faixa com dignidade. Ele não faz isso: o rapper vai muito além de seu trabalho e torna-se a voz de uma população inteira com uma garra feroz. Uma vontade de ser mais que apenas um rapper, mas um mensageiro, um arauto, um anti-messias. Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa... é o álbum perfeito para o momento atual do Brasil em todas as esferas assim com é o To Pimp a Butterfly do Kendrick Lamar para o momento dos Estados Unidos. Uma pena que o Emicida não será tão ouvido e respeitado como o do rapper americano. Quem estiver lendo essa resenha, eu peço: abra o seu coração e apenas ouça. Não seja mais um na multidão.

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