28 de novembro de 2021

Primeira Impressão

Sinner Get Ready
Lingua Ignota



Algumas experiências são tão impactantes que apesar de vivermos uma vida inteira é provável que nunca mais passaremos por algo parecido. É assim que senti após ouvir Sinner Get Ready da cantora Lingua Ignota. Em cerca de menos de uma hora foi catapultado em uma experiência que foi do profano ao celestial de uma forma quase inexplicável em um álbum simplesmente inacreditável.

Ao escutar o álbum já tinha uma noção que estava entrando em outro mundo depois de ouvir o magistral single Pennsylvania Furnace que disse que “senti uma mistura de medo, tristeza, elevação espiritual, tristeza e uma angustia melancólica que quase nunca tive ao ouvir uma canção. Grandiosa e, ao mesmo tempo, minimalista, a instrumentalização da canção vai em crescente até explodir em um clímax de deixar a gente quase surdo. Isso é apenas para sustentar a performance vocal brutal e gutural que parece desafiar as leis da natureza ao enfiar pequenas agulhas em nossos sentidos”. Todavia, o álbum pega toda essa sensação e eleva a décima potência ao ser uma epopeia espiritual que arranca qualquer expectativa da nossa cabeça ao pisar com o peso de uma tonelada. E quando digo espiritual realmente quer dizer espiritual no seu significado mais puro possível. Para melhor entender é necessário compreender um pouco quem é a artista por trás de Sinner Get Ready.

Kristin Hayter, nome de nascimento de Lingua Ignota, foi criada como católica, estudando parte da sua infância em uma escola vinculada a igreja. Recebendo treinamento clássico para a música, a cantora participou de algumas bandas de metal durante a adolescência, tendo influencias que vão do batoque até a opera. Além disso, Lingua é mestra em literatura e uma sobrevivente de violência doméstica. Então, essas combinações resultam claramente na sonoridade da cantora ao explodir em uma original, assustadora, gigantesca, tensa e sublima colisão de diversos gêneros. Sinner Get Ready é uma fusão de clássico, gospel, avant-gard, art rock, folk e um gênero chamado appalachian. Surgida na região da Appalachia nos Estados Unidos, o gênero é uma mistura curiosa de várias fontes como, por exemplo, hinos religiosos, música africana, blues, folk, bluegrass e, claro, country. Esse caldeirão é a base para que Lingua com o produtor Seth Manchester elaborar um verdadeiro vulcão sonoro que arrancar qualquer expectativa pela raiz para depois explodir tudo em uma lava densa, pegajosa, sublime e aterrorizante.

Como vocês podem ter reparado fico usado adjetivos que remetem ao medo, pois parece que isso que a cantora quer passar ao usar de diretas e claras alusões a religião. Não a religião do amor e esperança e, sim, aquela que se baseia na dor para a expiação celestial. E isso que faz de Sinner Get Ready soturnamente religiosa, mas que nenhum momento soa como uma pregação. Lingua não quer fazer de ninguém uma pessoa temente a Deus, mas, sim, a gente sentir o peso que é viver sob o manto desse Deus que pune pela dor. E isso é alcançado de forma genial em cada momento do álbum. Devido a genial instrumentalização que consegue ser extremamente complexa e, ao mesmo tempo, valorizar cada instrumento utilizado as últimas consequências, Sinner Get Ready consegue cria uma jornada que claramente começo no inferno até chegar aos céus e que cada pecado exposto é lavado pelo sangue e lágrimas. O maior momento do álbum fica nessa parte “infernal” com a presença da tour de force avassaladora de I Who Bend the Tall Grasses. Uma profunda, deslumbrante, intimidante e genial faixa que ao ouvir pela primeira vez fiquei literalmente de boca aberta devido ao seu impacto, mas também apreciado cada segundo como se fosse a última canção que iria escutar. Tente imaginar um musical de terror em que o principalmente momento seria a performance da canção no instante que a personagem principal fosse pedir interferência de Deus para que o seu “inimigo” possa ser morto de maneira brutal. Na verdade, a narradora não pede e, sim, exige que isso aconteça, pois, segundo o que diz a canção, a sua fé a fez merecer essa benção. Com tamanha bagagem sonora e lírica, I Who Bend the Tall Grasses tem na performance de Lingua o seu ponto alto no instante que a cantora dispensa estruturas para entregar a performance da sua vida entre gritos, sussurros e nuances vocais que valem por toda uma carreira.

Devido a esse treinamento clássico e as suas referências, Lingua Ignota é capaz de entrega performances que conseguem transcender o humano para realmente chegar ao divino, sendo o lado da luz ou da escuridão. Entregando uma mistura de opera, metal, performance artística e um toque de atuação, a cantora entoa cada canção como se fosse o seu último trabalho ao colocar doses cavalares de uma emoção bruta, uma força espectral e uma qualidade técnica quase sobre-humana que consegue trazer a tona todas as pequenas nuances das canções e sustentar com toda a bravura a imensidão sonora de Sinner Get Ready. Em The Order of Spiritual Virgins, abre alas do álbum, a cantora entrega uma performance gutural, gélida e assustadora que parece sair de um anjo caído abrindo as portas do purgatório. The Sacred Linament of Judgement encontramos uma cantora mais linear, mas envolvida em uma pragmática composição se mostra avassaladoramente real devido ao uso do sample do discurso do pastor Jimmy Swaggart que no final dos anos oitenta se envolveu em um caso extraconjugal com uma garota de programa. Liricamente, todas as canções do álbum envolvem imagens, metáforas e referencias religiosas, mas nem sempre é fácil entender o que Lingua quer falar. E isso, queridos leitores, não é algo que no final das contas não importante tanto, pois a forma como a jornada é construída é algo realmente que vale a pena. Outros momento que merece ser destacados ficam por conta da etérea Perpetual Flame of Centralia e a chegada ao céus com The Solitary Brethren of Ephrata e a sua devastadora dualidade de mensagem devido ao sample de uma entrevista em que uma mulher fala que não irá pegar covid devido a “estar coberta pelo sangue de Jesus”. Sinner Get Ready não é um álbum para o público mainstream, mas para todos que querem serem tirados da sua zona de conforto de maneira inesquecível graças ao talento absurdo de Lingua Ignota.


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