2 de novembro de 2025

Primeira Impressão

CARRANCA
Urias



Tenho alguns orgulhos com o meu blog, e um deles é poder acompanhar a carreira de um artista talentoso desde o seu começo. Um desses casos é o de Urias. Desde antes de lançar o seu primeiro álbum, o blog acompanha a carreira da cantora de perto, e algo que sempre apontei foi o potencial em construção que estava diante do público. Eis que toda essa trajetória deságua em seu momento mais triunfal com o lançamento da sensacional CARRANCA.

Terceiro álbum da carreira da artista, o trabalho não é apenas um ápice, mas também uma mudança considerável em sua sonoridade, demonstrando claramente uma evolução artística e o amadurecimento de sua visão e de sua estética. Nos dois primeiros álbuns, Urias trilhava um caminho com influências evidentes de eletrônico e pop, incorporando outros gêneros e estilos para encorpar a sonoridade e dar uma estética única a seus trabalhos, como R&B, rap e música latina.

Ao resenhar o álbum de estreia de sua carreira (Fúria), apontei que “Urias aperta o acelerador no eletrônico/alternativo com uma fortíssima influência no trabalho da venezuelana Arca”. Essa é uma definição bastante acertada do que a artista fez nessa primeira fase da carreira.

Em CARRANCA, porém, a guinada sonora leva para um lado mais autoral, ao entregar uma riquíssima e desconcertante coleção de faixas que transitam perfeitamente entre neo-soul, R&B alternativo, hip hop, smooth soul, MPB, afrobeats, jazz e blues. Todavia, não é apenas a mudança de gêneros que faz nascer uma nova Urias diante de nós, mas algo que vem de sua essência criativa. E é aqui que está o ponto crucial para entender por que este é o seu primeiro grande ápice.

A melhor comparação que posso fazer é que os dois primeiros álbuns de Urias são como o resultado de uma redação feita por um ótimo estudante do ensino médio, enquanto CARRANCA é a redação desse mesmo aluno, agora ao final do curso superior e prestes a ingressar no mestrado. Existem claras semelhanças entre as duas redações, que se diferenciam pela maturidade e pelo conhecimento estético e de conteúdo. E é justamente nesse último aspecto — conteúdo — que reside a diferença fundamental.

Apesar de já ter abordado temas complexos, Urias faz deste álbum um manifesto inteiro e intrincado sobre o passado, o presente e o futuro da história da raça negra, atravessando temas como memória, religiosidade, amor, ancestralidade e diversidade. Essa é a chave mestra da evolução de Urias: ela utiliza o peso da experiência adquirida para refletir de maneira mais profunda e, assim, avançar artisticamente. É preciso apontar, contudo, que esteticamente — ou seja, no “resultado no papel” dessas observações, contemplações, protestos e críticas — o trabalho ainda poderia ser mais refinado. Fica claro que ainda falta certo polimento visual para aprofundar ainda mais as mensagens. Todavia, isso não diminui a força, o brilho e a importância do que Urias quer comunicar, pois a mensagem chega em alto e bom som aos ouvidos de quem escuta canções como a sensacional Deus, que é “forte, urgente e ácida ao abordar o apagamento da cultura e da religião dos povos africanos durante o período colonial — ainda que pudesse ser, tecnicamente, mais refinada em certos momentos”.

Se há o que pontuar liricamente, CARRANCA acerta perfeitamente sonoramente.

Como já explicado, a mudança de sonoridade é um acerto por conferir maturidade à artista, mas esse acerto não aconteceria se não fosse conduzido de forma correta. Felizmente, isso ocorre de maneira exemplar, pois a construção do álbum é injetada com uma força instrumental refinada e elegante, que consegue criar uma coleção íntegra e inspirada. Não estamos diante de uma artista apenas buscando novos caminhos, mas de alguém cuja produção lhe oferece a base para existir plenamente como artista — em toda a sua completude e brilhantismo.

Embora essa característica permeie todo o disco, há uma sequência primorosa na metade do álbum que representa seu ponto máximo: começa com a presença irradiante e densa da soul/pop soul com toques de jazz e rock em Vontade de Voar, passa pelo interlúdio Oração, narrado pela voz de Marcinha do Corintho (outro acerto, por fazer dela uma espécie de cicerone temática do álbum), e chega à magistral e tocante Etiópia, uma fusão de soul, R&B, afrobeats e MPB.

Apesar das participações especiais, Urias se afirma como uma intérprete singular e poderosa, entregando as melhores performances de sua carreira. É verdade que o timbre anasalado da cantora divide opiniões, mas, sinceramente, ele é um dos fatores que a tornam tão marcante. Em CARRANCA, é o trabalho que melhor explora suas características vocais, conferindo personalidade às canções e revelando grande versatilidade ao transitar entre suas facetas de cantora e rapper. Em Paciência, por exemplo, Urias entrega sua melhor performance como rapper, em uma faixa inspirada e instigante, com a excelente participação de Don L. No encerramento do álbum, a cantora mostra outra faceta dessa vertente ao entoar a inusitada e carismática Voz do Brasil, que utiliza o sample da música do tradicional programa de rádio para criar uma das canções mais estranhamente divertidas do ano. Outros grandes momentos do álbum ficam com a pungente reflexão sobre a fama e as expectativas alheias em Vênus Noir, a delicada e graciosa Navegar e a deliciosa e sensual Herança, com a sensacional presença de Giovani Cidreira.

CARRANCA é, sem nenhuma dúvida, o primeiro ápice da carreira de Urias — e tenho certeza de que outros virão em um futuro não muito distante.

Nenhum comentário: