31 de dezembro de 2018

Primeira Impressão

EL MAL QUERER
Rosalía



Queridos leitores, hoje irei trazer algumas verdades para vocês nesse final de 2018: o pop é muito mais que a sua prorrogável concepção sobre o que é pop. E estou falando de qualquer concepção de vocês podem ter, indo daqueles que acreditam que o pop seja apenas a farofada de algumas divas pop até mesmo aqueles que pensam que o pop é, na verdade, apenas criado por artistas descolados/underground/desconhecidos que fazem uma sonoridade indie/experimental. Na verdade, o pop é isso, mas é muito mais abrangente que essas limitações, incluindo até a mesmo a minha visão sobre o gênero. O que tento fazer para não cair nessa limitação é abrir a minha mente para o inesperado sem levantar nenhum conceito já estabelecido. Nem sempre é fácil, mas é algo que abre o meu horizonte para novas experiências. Devido a essa prática, hoje posso afirmar sem nenhumac sombra de dúvida que um dos melhores álbuns de pop de 2018 é um trabalho que desafia qualquer norma sobre o que é pode ser considerado pop. Esse álbum é sensacional EL MAL QUERER da espanhola Rosalía.

Nascida na Espanha e com apenas vinte e cinco anos de idade, a cantora conseguiu alcançar no lançamento do seu segundo álbum algo que poucos artistas já atingiram: uma pequena revolução sonora. Obviamente, apenas por conseguir se destacar no mercado internacional ao entregar um álbum completamente em espanhol já é algo impressionante, mesmo que nos últimos tempos o mercado tenha passado por uma nova ressurgência da música latina. Entretanto, Rosalía não tem uma sonoridade que seja nem parecida com despasitos e mi gentes da vida, indo completamente na contramão de qualquer gênero que esteja dentro do mainstream. Não que a cantora crie um novo gênero, mas em EL MAL QUERER é dado uma visibilidade para um estilo bem espanhol: o flamenco. 

Símbolo da cultura espanhola, o flamenco é o tipo de música que, apesar do reconhecimento até fácil por quem não nasceu na Espanha, ainda é pouco conhecido pelo resto do mundo em todas as suas facetas, sendo melhor prestigiado na sua forma clássica e tradicional. E, assim como outros gêneros com essas mesmas características, o público em geral quase não tem contato com artistas e canções de artistas desse nicho e apenas é exposto ao mesmo em momentos peculiares. Então, como pode Rosalía ter conseguido fazer de EL MAL QUERER tão discutido e importante para 2018? Primeiramente, o álbum não é um trabalho de flamenco puro, mas, sim, o que pode ser denominado como flamenco pop devido a atualização do gênero com a do tão disseminado pop. Em segundo lugar e o mais importante, a jovem cantora tem uma ideia e visão apenas sua sobre o que deve ser o flamenco e, principalmente, o que é o flamenco pop. Assim como grandes nomes da música como, por exemplo, Kendrick Lamar, Janelle Monáe e Beyoncé, Rosalía pega a expectativa que se constrói do público, ao ouvir que o mesmo está diante de um álbum de flamenco pop, e a destrói para reconstruir a seu belo prazer, sem ter medo de ousar, quebrar paradigmas, misturas referências, texturas, batidas e cores. Produzido pela própria Rosalía ao lado do coletivo de produção El Guincho, EL MAL QUERER é o resultado da união do constância do tradicional com a inovação do moderno, criando algo novo e realmente excitante.

Para elaborar a sonoridade do álbum, a produção misturou ao flamenco, além do pop, vários outros gêneros como R&B, trap music, experimental e hip hop, conseguindo entregar um trabalho com uma personalidade tão forte como os passos de flamenco. Sem perder o foco em nenhum momento, mas sempre querendo dar um passo a frente, a produção constrói uma das instrumentalizações mais complexas e ricas de 2018. Sem precisar, porém, de estender as canções em longas durações, pois, como um todo, o álbum tem apenas trinta minutos de duração. Essa rapidez ajuda demais ao resultado final ao não gerar aquela impressão de ser um trabalho arrastado como vários álbuns apresentam. Para se ter uma ideia da grandiosidade da sonoridade de EL MAL QUERER que apenas consigo associá-lo com os filmes de Pedro Almodóva, pois estamos diante de uma obra multicolorida, emocionante, profunda, contemporânea e, ao mesmo tempo, convencional. É essas são algumas das características das obras de Almodóva. Tanto que em um das faixas/ (a intro PRESO (Cap.6: Clausura)) é narrado pela atriz Rossy de Palma, frequente colaboradora do diretor espanhol. Além da semelhança sonora, o álbum também pode ser comparado na temática com os trabalhos de Almodóva.

Pensado como um álbum conceitual e inspirado no livro espanhol Flamenca do século treze, EL MAL QUERER tem como tema central um relacionamento tóxico. As faixas foram divididas em "capítulos", evidenciando um estágio/emoção desse relacionamento. Essa decisão dá para o álbum uma coesão, gerando uma sensação de que estamos diante de uma história com começo, meio e fim. Claro, quem não é fluente em espanhol assim como eu, as composições podem não ter o mesmo apelo emocional que para quem sabe fluentemente o idioma. Além disso, Rosalía e a sua equipe de compositores apresentam uma estética lírica "diferentona", misturando construções sintáticas mais comuns com quebras nessas construções que criam letras que estão a beira de serem poesias urbanas/contemporâneas. Não é exatamente muito fácil de acompanhar em alguns momentos, mas a profundidade emocional implícita consegue arrematar alguns desses problemas. EL MAL QUERER é um trabalho que se deve ouvir como um todo, mas posso destacar alguns momentos importantes: a já cult MALAMENTE (Cap.1: Augurio), a extraordinária QUE NO SALGA LA LUNA (Cap.2: Boda) que mostra bem a versatilidade vocal de Rosalía ao entregar uma performance que mistura perfeitamente a sua formação clássica e as suas referências modernas e a dramática e imponente RENIEGO (Cap.5: Lamento). Outros momentos de destaque são BAGDAD (Cap.7: Liturgia) que tem um inesperado uso de sample de Cry Me A River do Justin Timberlake e a fantasmagórica e triste NANA (Cap.9: Concepción). Depois de ouvir o trabalho de Rosalía acredito ainda mais que a minha concepção de pop cresceu, mas que ainda existem muito espaço para desvendar novas e excitantes sonoridades em 2019.

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