20 de janeiro de 2019

Antes Tarde do Que Nunca - Grandes Álbuns dos Anos '90

Post
Björk




Durante os dez anos do blog não sei quantas vezes utilizei o termo atemporal para denominar uma centena de álbuns e canções, mas, poucas vezes, discuti sobre o que significa de fato esse adjetivo para o mundo da música. Então, acredito que não exista melhor momento do que esse Antes Tarde do Que Nunca ao falar sobre um álbum que define exatamente o que é ser atemporal: o avassalador Post, terceiro álbum da Björk. Lançado em 1995, o álbum foi o trabalho que ajudou a consolidar a carreira da Björk como um dos principais nomes da música alternativa dos anos noventa.

Depois de arrebatar o mercado fonográfico dois anos antes com o seu segundo álbum (Debut), a cantora com trinta anos na época se tornou, ao seu modo, uma verdadeira superstar por vários motivos, mesmo que a cantora tenha lutado contra esse seu novo status. De qualquer forma, Post não foi importante apenas pela elevação de popularidade da cantora subsequente, mas, principalmente, devido ao conteúdo do álbum. Primeiramente, em uma época em que Michael Jackson e a Madonna eram os principais nomes em relação ao audiovisual da época devido, principalmente, aos tempos dourados da MTV e o começo da globalização, Björk conquistou o seu espaço entre os grandes com  a sua visão avant-garde no quesito clipes, misturando surrealismo com temas referentes a tecnologia, preservação da  natureza e questões da humanidade. Em segundo, Post é considerado um dos marcos mais importante para a construção da música alternativa contemporânea ao restruturar o gênero em um trabalho que parece ter sido lançado em qualquer momento nesses quase vinte e cinco anos.

Antes de entrar em detalhes sobre a sonoridade em si do álbum é necessário ressaltar a sua principal qualidade: a já falada atemporalidade. Entretanto, o grande trunfo de Post ao ser analisado depois de trinta anos não é soar atemporal ao apenas refletir o contexto em que foi lançado, pois, várias vezes, quando isso acontece é fácil ter um álbum atemporal, porém, datado. Um bom exemplo é os trabalhos lançados na era da disco music: apesar da influência sobre a música até os dias de hoje, esses trabalhos já tiveram o seu tempo e se lançados atualmente iriam ter forte cheiro de naftalina e, muito provavelmente, não iriam fazer sucesso ou chamar a atenção da mídia. O que acontece no trabalho da Björk é que essa sua atemporalidade se estende para a sensação que, independentemente de quando for laçado, a sua sonoridade se encaixa em qualquer período da música. Post poderia ter sido lançado em 1990 ou no começo dos anos 2000 ou mesmo no último dia de 2018 que o resultado seria basicamente o mesmo em relação ao reconhecimento da mídia especializada. Essa qualidade é reservada apenas para pouquíssimos álbuns de uma quantidade de artistas ainda menor e, por isso, Post está em uma categoria apenas sua dentro do panteão dos maiores álbuns da história. E isso já seria valido devido só sua inovadora sonoridade. 


Completamente influenciada pelo efervescente cenário underground/experimental londrino daquela época, Björk trabalhou com um verdadeiro "quem é quem" do cenário alternativo para construir Post. A cantora foi buscar em diversas fontes a inspiração para álbum ao misturar sem medo vários gêneros e estilos que na prática não combinam: trip hop, industrial, dance-pop, jazz, art pop e até musica clássica. Essa misturada parece algo até comum atualmente, mas no começo/metade dos anos '90 era algo completamente fora da casinha para se fazer. Obviamente, mesmo no começo da sua carreira, o público já tinha percebido que a islandesa não era exatamente o protótipo do que seria uma "diva" no meio musical ao literalmente "andar na sua própria batida". Acredito, porém, que o lançamento do segundo álbum confirmou mais essa visão, pois o trabalho é o que podemos chamar de uma eletrizante excentricidade. Por isso, a fusão de tudo o que já foi dito resulta em uma verdadeira explosão sonora em uma roleta russa sonora.

Ao contrário do que poderia se imaginar, a produção que conta com a presença ativa da cantora em todas as faixas (em duas assinando sozinha) decidiu não incorporar todos os gêneros/influências em apenas uma grande massa, mas, sim, fazer de cada canção um pequeno e complexo trabalho sonoro, mudando os estilos a cada nova faixa. Cada canção apresenta seu próprio nicho, estilo, gênero e sonoridade diferentes, criando uma inconstância gigantesca que poderia abrir espaço para a sensação de estranheza e descontinuidade que afetaria o resultado final. Isso, porém, passa bem longe do resultado final, pois, em primeiro lugar, estranheza é um dos guias bases de toda a carreira da Björk e, por isso, essa sensação é muito mais que bem vinda e, sim, necessária para a assimilação do que estamos ouvindo. Em segundo lugar, mesmo sendo quase uma jukebox, o álbum apresenta uma coesão e fluidez impressionante, criando um clímax do primeiro momento até o último segundo. Provavelmente, nas mãos de outro artista, até mesmo talentoso, poderia resultar em um trabalho que nem chegasse ao impacto e a longevidade que Post apresenta. Se o álbum apresenta essa distinta característica de ser formado por faixas tão diferentes é obrigatório refletir individualmente nas principais canções do álbum. Assim também podemos entender melhor as outras facetas do trabalho e da estética da Björk.

Post já começa com uma das faixas mais marcantes da carreira de Björk: Army of Me é um pesado, sombrio e denso rock industrial que entra na cabeça e parece na sair mais com a batida marcante e os seus sintetizadores pungentes. A canção poderia cair em uma vala de pretensiosismo se a sua forma não estivesse na mesma altura que a sua substância, isto é, se a parte instrumental não fosse criada na mesma altura que as ideias por trás. E isso é outro ponto importantíssimo para a atemporalidade do álbum: a produção técnica é de uma qualidade magistral e impecável durante tudo o álbuns, ajudando a nortear todas as inclusões de texturas, nuances, batidas e quebras de expectativas de uma forma que o resultado final soe orgânico e, primordialmente, seja o suporte perfeito para toda a loucura sonora que é o álbum. Uma curiosidade: um dos principais nomes por trás é o do conceituado músico brasileiro Eumir Deodato, conhecido pelos trabalhos ao lado de Milton Nascimento, João Donato, Frank Sinatra, Aretha Franklin e centenas de outros. Diretamente a pós o soco na cara que é Army of Me aparece a delicada e etérea Hyper-Ballad. Claro, ao partir de uma canção tão forte para outro com uma pegada completamente oposto gera algum desconforto, mas é exatamente essa a intenção.

O

utro momento de pura genialidade, Hyper-Ballad é quase uma balada épica, mas com uma sonoridade que mistura folk com música eletrônica e toques de house music. O resultado é uma profunda e imersiva canção em que o público é levado a entrar de cabeça no mundo da Björk, principalmente devido a sua desafiante composição. Sempre trabalhando pelo principio do "menos é mais", as composições da cantora sempre apresentam uma limitada e contida escolhas de palavras, mas que passam a anos luz de serem fáceis de compreendidas. Em Hyper-Ballad, por exemplo, a cantora conta a história de uma jovem que, depois de se levantar antes do parceiro todos os dias, vai ao topo da montanha jogar coisas em um precipício para aliviar as tensões do dia a dia. Parece uma história meio tolo que não deve levar a lugar nenhum, mas, com a poética estranhamente brilhante de Björk, Hyper-Ballad se torna uma emocionante crônica sobre os demônios internos de cada um e como deveríamos lutar contra cada um para que possamos ter um relacionamento mais sadio. Entretanto, quando você acha que começou a entender a dinâmica do álbum, Björk quebra qualquer expectativa com a presença da já lendária regravação de It's Oh So Quiet.

Lançada originalmente em inglês em 1951 pela cantora Betty Hutton que, na verdade, já era uma versão de uma canção em alemão chamada Und jetzt ist es still de 1948 que ganhou em 1949 uma versão em francês chamada Tout est tranquilleIt's Oh So Quiet é uma big band jazz a frente do seu tempo devido as suas mudanças de cadencias sonoras e grandes nuances vocais. Obviamente, a canção foi uma escolha ousada da cantora para compor o álbum, mas nas suas mãos o resultado é o que a gente não poderia esperar: It's Oh So Quiet se transforma em uma canção que fica quase exatamente como a original de Betty. Exatamente isso, querido leitores, tirando apenas algumas alterações de andamento e a eliminação de vocais de apoio masculinos na sua parte final, Björk decidiu colocar uma big band jazz no meio de Post que, primordialmente, apresenta uma sonoridade alternativa/eletrônica. A decisão é tão louca, inesperada e impressionante que funciona perfeitamente dentro do álbum, ainda mais devido a canção ser exatamente louca, inesperada e impressionante por si. Talvez a canção mais polêmica da carreira da cantora e, também, a de maior sucesso, a versão de It's Oh So Quiet funciona basicamente devido a performance deliciosamente ultrajante e de uma personalidade tão única que apenas Björk poderia entregar. E esse é o ponto que "cola" todo o álbum, sustentando toda a sua grandiosidade criativa. 

Bem antes de ter alcançado o estado mais "puramente Björk" ouvido nos seus últimos trabalhos, a cantora já era uma verdadeira força da natureza com o seu único e inimitável estilo e timbre de cantar. Aqui, porém, a cantora apresentava uma versatilidade maior em suas performances devido, essencialmente, a variedade de estilos das canções. Isso não impedi de termos Björk em seu estado bruto, mostrando a plenos pulmões o seu forte sotaque, o timbre delicado e a maneira esquisita e fascinante de dar vida para as canções. Não é algo que agrade qualquer público, pois é necessário encontrar a beleza naquilo que não é fácil de entender ou de apreciar com uma simples ouvida. É preciso ter paciência e calma para ouvir e captar toda a complexidade de performances que, algumas vezes, parece deslocadas ou que trabalham no limite do simplismo. Isobel com a sua batida trip hop e a sua história de um ser das florestas que não consegue viver na cidade é uma exemplo perfeito da capacidade vocal distinta de Björk em toda a sua glória. Entretanto, melhor momento vocal do álbum vem da tristonha/delicada eletrônica/trip hop/ambiente Possibly Maybe em que podemos ouvir a cantora na sua performance mais visceral até então. Outros momentos importantes do álbum ficam por conta da EDM/folk/alternativo I Miss You e a delicada e densa Headphones e a sua atmosférica produção ainda mais experimental, sendo esse tom que seria cada vez mais explorado pela cantora em trabalhos futuros. A experiência de ouvir Post é algo que deveria ser obrigatória para qualquer um que realmente gosta de música que via além da massificação. E o melhor é que a Björk parece ter lançado o álbum na última semana, dando uma verdadeira lição para qualquer artista que queria fazer a sua música para ser lembrado por várias gerações.

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