8 de setembro de 2016

Primeira Impressão

A Mulher do Fim do Mundo
Elza Soares



Quando alguém começa a citar quais as maiores cantoras brasileiras de todos os tempos sempre irá aparecer alguns nomes com certeza. Elis Regina, Maria Bethânia e Gal Gosta devem ser os nomes que encabeçam a lista, mas Rita Lee, Clara Nunes, Maysa, Nara Leão, Carmen Miranda (mesmo tendo nascido em Portugal) são figuras constantes nessas listas. Para os mais conhecedores e saudosistas da música nacional citam Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Emilinha Borba, Inezita Barroso e Ângela Maria. Nomes mais modernos como Marisa Monte, Ana Carolina, Adriana Calcanhotto e Ivete Sangalo podem ser citados. Claro, ainda existe uma dezena de nomes que ainda podem ser colocados nessa lista, mas existe um que pode passar despercebido, dependendo de quem idealiza a escolha. Esse nome é a da Elza Soares. E quando a cantora não é inclusa em uma dessa lista, acredite querido leitor, é um dos maiores sacrilégios que se pode fazer.

A Mulher Vinda do Planeta Fome

Dentro desses nomes citados, a cantora é a que melhor representa o povo brasileiro, mas não todo povo e, sim, uma pequena grande fração: os excluídos. Na sua trajetória de vida, Elza Conceição Soares enfrentou as maiores barreira para conseguir sobreviver, assim como milhares de pessoas a margem da sociedade. Nascida em 1937 (como aponta a maioria das fontes), Elza nasceu negra e pobre, quase uma sentença de sofrimento para o resto da vida. Aos doze anos foi obrigada a casar por seu pai. Ao quinze já tinha dois filhos. Aos vinte e um já era viúva. Ao se casar com o jogador Garricha, mas nunca teve realmente paz lutando contra o alcoolismo do marido e todas as tragédias que a abateu sobre a sua vida. No plural mesmo, pois foram várias. Não irei recapitular todas aqui, mas para se ter uma ideia Elza perdeu cinco filhos ao longo da vida. A dor de perder um para uma mãe deve ser o pior sentimento do mundo. Imagine cinco filhos.

Um dos momentos mais famosos da sua vida aconteceu aos vinte e um anos quando participou do show de calouros em uma rádio apresentado pelo Ary Barroso. Sempre sarcástico, ao ver aquela mulher mal vestida, magra e humilde o cantor/apresentador perguntou: 

-De que planeta você veio?
-Vim do mesmo planeta que o senhor. - respondeu Elza.
-E posso saber de que planeta eu sou?
-Do planeta fome.

Logo em seguida, Elza cantou e simplesmente arrasou, vencendo o concurso. O dinheiro de prêmio usou para comprar remédios para o seu filho doente. Então, começou uma carreira que já dura mais de cinquenta anos com trinta e cinco álbuns já lançados e algumas conquistas importantíssimas como, por exemplo, ter sido considerada pela BBC de Londres como uma das melhores cantoras de todos os tempos. Entretanto, Elza chega aos oitenta anos de idade no melhor momento artístico da sua carreira genial. Mesmo com a sua saúde debilitada, a cantora lançou no finalzinho do ano passado o álbum A Mulher do Fim do Mundo que já nasceu como um verdadeira marco histórico na história da música brasileira.

A Voz Daqueles Que Não Tem Voz

A importância de A Mulher do Fim do Mundo é de uma grandiosidade pouco vista no atual cenário fonográfico brasileiro por vários motivos. Primeiramente, o álbum é o primeiro na carreira de Elza que possui apenas canções inéditas, isto é, todas as onze faixas nunca tinham sido gravadas por outro artista. Financiado pela empresa Natura Musica, o álbum também marca o primeiro de estúdio da cantora desde 2003. Em segundo lugar, e o mais importante, o álbum é simplesmente a mais pura expressão da genialidade artística.

Produzido por Guilherme Kastrup, A Mulher do Fim do Mundo é uma avassaladora, acachapante, destruidora, lacradora e qualquer outro adjetivo que possa captar toda a genialidade por trás de cada elemento que faz parte do álbum e como eles se misturam para criar uma verdadeira obra de arte. Começa pelas verdadeiras poesias marginais que se passam por simples composições. Afirmando que a sua voz é para levar a luz os dramas das mulheres negras, mas, também, dos gays e das prostitutas. E é isso que podemos ouvir no álbum. Ouvir, não. Sentir cada palavra como se fosse uma pregação divina.

A Mulher do Fim do Mundo já começa de maneira arrebatadora com Coração do Mar, poema de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik:

Coração do mar
É terra que ninguém conhece
Permanece ao largo
E contém o próprio mundo
Como hospedeiro
Tem por nome "Se eu tivesse um amor"
Tem por nome "Se eu tivesse um amor"
Tem por nome "Se eu tivesse um amor"
Tem por nome "Se eu tivesse um amor"

Tem por bandeira um pedaço de sangue
Onde flui a correnteza do canal do mangue
Tem por sentinelas equipagens, estrelas, taifeiros madrugadas e escolas de samba


É um navio humano quente, negreiro do mangue
É um navio humano quente, guerreiro do mangue


Logo em seguida aparece a faixa que dá nome ao álbum: Mulher do Fim do Mundo é sobre muitas mulheres negras que, apesar de enfrentarem todos os problemas do mundo, conseguem deixar tudo isso de lado ao se divertirem durante o carnaval. O seu único escape da vida que levam. O único momento em que podem se dar ao luxo de serem felizes.

Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar
Eu vou cantar até o fim
Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou cantar, me deixem cantar até o fim

Ao final dessas duas músicas já estamos rendidos. O que vem em seguida é um verdadeiro prego no caixão emocional de quem escuta. Cada faixa é uma verdadeira crônica nua e crua sobre as vidas das pessoas que estão a margem da sociedade. Com nomes poucos conhecidos como compositores, mas extremamente competentes, Elza tem em mãos verdadeiras preciosidades de uma ferocidade tocante ao falar sobre violência doméstica, sexo, transexualidade e drogas. Existe uma verdadeira urgência em cada letra que, também, emanam uma sensação de contemplação que dá o tom perfeito o álbum. Moderno, ousado, angustiante, triste, necessário, grandioso, deslumbrante. Todos esses adjetivos são perfeitos para qualificar A Mulher do Fim do Mundo. Mas não para por aí.

O Som Ao Redor e A Voz Interior

A melhor descrição para o sonoridade ouvida no álbum é a que Celso Sim, um dos colaboradores no álbum, estabeleceu: punk-samba. A aspereza ouvida na inacreditável mistura de dezenas de instrumentos só pode ser classificada como punk, mas a cadencia, muitas vezes melódica e swingada, vem diretamente do melhor samba que se pode encontrar. Como uma ópera de malandro, a sonoridade no álbum tem uma dramaticidade suja que condiz perfeitamente com os assuntos levantados, sem nunca ser maior ou menor. Não é fácil ouvir o trabalho do começo ao fim. Existe uma especie de "pedra" no caminho, pois não estamos acostumados com tantos socos direto no estômago de uma vez só. Passada essa sensação, A Mulher do Fim do Mundo ainda guarda o seu melhor aspecto em plena força vital: Elza Soares.

Claro, a senhora de quase oitenta anos não possui a mesma voz que há vinte ou trinta anos atrás, porém, assim como uma verdadeira fênix, Elza se reinventa sem perder os seus grandes trunfos. Sempre visceral em todos os momentos, a cantora continua com a mesma gutural voz que é capaz de entoar notas que nenhuma outra cantora no mundo é capaz. É de Elza toda a alma e coração de A Mulher do Fim do Mundo. A sua bússola vital. A força da natureza que move os moinhos. O começo e o fim. Elza é a mulher no fim do mundo. Citar momentos de destaque no álbum é praticamente impossível, mas aconselho que prestem um pouco mais de atenção nas faixas Maria da Vila Matilde, Pra Fuder, Benedita e Firmeza para conhecerem o que é perfeição na música brasileira. Com A Mulher do Fim do Mundo, a cantora mostra definitivamente para os brasileiros o que vários "gringos" já tinham descobrido décadas atrás: Elza Soares é uma das maiores artistas de todos os tempos mundialmente.

3 comentários:

João disse...

Nossa
Realizou meu sonho de ver esse álbum aqui
Realmente é maravilhoso

Anônimo disse...

Que foda! Se eu já pude sentir toda a força do disco lendo sua crítica, imagina o escutando... GENIAL !

lucas lopes disse...

Antes tarde do que nunca essa resenha com mais de um ano de atraso. Esse disco é transcendental, único e fantástico. Para dizer o mínimo. Amo e devoto.