26 de janeiro de 2025

Os Melhores Álbuns de 2024 - Parte Final

 



Parte I
Parte II
Parte III

5. GNX
Kendrick Lamar



"Com doze faixas, o álbum é o trabalho oficial mais curto da carreira do rapper, mas isso não quer dizer que seja um trabalho artístico menor. Tenho que apontar, porém, GNX fica em comparação a alguns degraus de trabalhos como, por exemplo, To Pimp a Butterfly de 2017 e, mais recentemente, Mr. Morale & the Big Steppers de 2022. E isso é devido principalmente devido ao fato da sonoridade ouvida aqui tem uma pegada mais contida do que a imensa complexidade que foram construída para os álbuns citados. Todavia, quando estou referindo a contida é relação apenas a discografia do própria Lamar, pois um álbum como o apresentado aqui nas mãos de boa parte dos artistas do gênero seria basicamente a sua “obra prima”. Tirando esse pequeno fato de lado é ainda impressionante e maravilhoso perceber que um artista que chegou no nível do de Lamar ainda está ativamente na busca de experimentar e evoluir a sua sonoridade.

Em GNX, não existe uma quebra de expectativa drástica, mas, sim, Lamar adicionando camadas, nuances, texturas e sons para a sua já consagrada sonoridade ao buscar fundir sua visão com novas percepções ao dar parte da produção para o Jack Antonoff sem perder o seu caminho original ao chamar também o seu colaborador de longa data, Sounwave. Além disso, o álbum tem pinceladas interessantes de visões de nomes como Kamasi Washington, Mustard, Sean Momberger, do próprio rapper que assina alguns faixas, entre outros nomes menos conhecidos. Serei sincero e admitir que quando vi Antonoff estava envolvido tive medo que algo poderia atrapalhar o trabalho devido ao trabalho dele ser uma montanha russa de qualidade e criatividade. Felizmente, o resultado do trabalho dá para perceber que o produtor consegue refletir para quem o mesmo produz, conseguindo se adaptar a personalidade artística do rapper e adicionar boas ideias ao longo do processo. Além disso, a experiencia e química dos outros nomes escolhidos, especialmente do Sounwave, consegue equilibrar tudo de maneira extraordinária ao entregar uma sonoridade madura, excitante, desconcertante, viciante, carismática e surpreendentemente dançante.

Essa surpresa é devido ao fato que quando notamos que o álbum é basicamente a continuação/apêndice/finalização da guerra com o Drake seria de alguma maneira esperado uma coleção de canções mais densas, mas GNX entrega momentos realmente de diversão pura com momentos de uma personalidade ideal para ser um hit comercial com a cara do rapper. É necessário apontar que não diversão com uma pegada “pop”, mas, sim, o que seria uma música dançante pela visão do Kendrick Lamar. E o grande momento disso é a viciante squabble up. Com um pouco mais de dois minutos e meio, a canção é uma explosão controlada e deliciosa que mistura hip hop, funk, eletrônico e soul em uma batida rápida, marcante, elétrica e com a marca da personalidade de Lamar. O grande acerto da canção, porém, é o uso do sample When I Hear Music da cantora Debbie Deb que dá uma áurea atemporal ao invocar uma atmosfera dos anos oitenta. Existem outros momentos em que esse lado é também explorado, deixando claro que GNX é uma obra para o Kendrick Lamar se “divertir” da sua maneira. Entretanto, isso não quer dizer que não queria falar sério, pois liricamente é facílimo de perceber que o rapper continua o mesmo: uma metralhadora imparável e destruidora."

4. Bright Future
Adrianne Lenker


"Sexto álbum da carreira da cantora, Bright Future é um trabalho que sobre a força que reside no nosso dia a dia, nas pequenas situações corriqueiras, nas lembranças dos eventos que vivemos, nas pessoas que nos cercam e como essas pessoas interagem com a gente ao longo do tempo. Isso é fácil para quem escutar se identificar de alguma maneira, pois são coisas que passamos em algum momento das nossas vidas já que são experiências coletivas que fazem a gente se reconhecer no outro. E aí que está toda a força da lírica de Lenker, pois a mesma consegue transforma essas crônicas de pequenas coisas em históricas tocantes, emocionais, devastadoras, sinceras e inspiradas. Não há em nenhum momento, porém, a vontade de transformar as composições em inteligentonas para mostrar a capacidade lírica de criar metáforas ou/e analogias complexas para expressar sentimentos relativamente simples de serem explicados. Escrevendo todo o álbum sozinha, a artista faz aqui é quer entregar a mais pura simplicidade nas palavras para transmitir a verdadeira força das suas delicadas e intimas emoções. Tudo começa logo de cara na estupenda e genial Real House.

A faixa que abre Bright Future é uma delicada e contemplativa narração sobre as memorias que a Adrianne Lenker sobre as lembranças que teve na infância devido as constantes mudanças de casas que a sua família passou ao longo dos anos. Na superfície, a canção é sobre a cantora lindou com tudo isso e, o mais genial, é que profundamente também é sobre isso em toda a sua simples glória. A cantora não quer criar grandes imagens ou devastadores arrombos, mas, sim, narrar de maneira sincera sobre o que viveu e sobre como isso a influencia até hoje. Divido em oito versos em cada um narra uma memória, Real House é quase uma conversa que a mesma parece está tendo com a sua mãe sobre esses dias em que as lembranças vão sendo inundadas na sua mente como uma maré subindo aos poucos, preenchendo todo o ambiente sem precisar criar grandes movimentos e deixando marcas profundas. E o grande momento é no seu verso final em que tudo é arrematado pelo o que parece a memoria mais forte ao relembrar a reação da sua mãe com a morte do cão da família:

I never saw you cry
Not until our dog died
And the whole family came back together
We held her body as they put the needle in her
And then I saw you cry
And then I saw you cry

E maneira terna, a canção termina como em um quase suspiro assim com o final de uma conversa tão sensível e contemplativa, deixando a sensação de incompletude que nos remete com o fato que existem coisas que não precisam serem terminadas já que continuam em fluxo de vindas e idas. E sem perder tempo, Bright Future nos dá outro momento triunfal e de tirar o folego com o espetacular single Sadness As a Gift.

“O que faz da canção uma obra devastadora é a sua composição. Na verdade, o motivo é como a artista consegue elaborar a ideia que nem sempre o fim de um relacionamento precisar ser dramático, mas, sim, chegar a conclusão serene que o fim é o único caminho para se seguir. E sem precisar usar de lugares comuns para querer arrancar uma lágrima apenas, Lenker escreve uma das letras mais devastadoras dos últimos tempos de maneira tão leve como soprar uma pluma no ar, especialmente no seu refrão: “The seasons go so fast Thinking that this one was gonna last/ Maybe the question was too much to ask”. Sonoramente, o álbum não recria nenhuma roda ou entrega algo que seja extremamente criativo, mas a produção de Philip Weinrobe ao lado da própria da cantora entrega uma excepcional, madura e mágica que mistura folk, indie e americana. E existe claro um cuidado impressionante com o instrumental que é impecável do começo ao fim. Acredito que essa sonoridade e como a mesma é guiada é a perfeita base para as composições, pois não permitem que as mensagens sejam ofuscadas e, ao mesmo tempo, se tornam o veículo ideal para toda a força emocional que é apresentada."


3. Songs of a Lost World
The Cure


"O álbum apresenta uma construção instrumental simplesmente descomunal e é o reflexo do peso da experiencia da banda que injeta em cada momento uma maestria sonora misturada com uma identidade artística atemporal. É até possível a gente ver artistas seguindo o mesmo caminho, mas o The Cure mostra que é preciso muito mais para entregar tamanho poder técnico associado com um poder emocional, conseguindo equilibrar a imensa bagagem com esse frescor de uma banda que parece que se redescobriu depois de quase cinquenta anos na atividade. E tudo isso já começa com a gigantesca abertura em Alone. Com quase sete minutos de duração, a canção é uma epopeia sonora hipnotizante e de tirar o folego que nos agarra pela cintura e nos leva em uma jornada de sensações impressionantes. A canção também mostra uma característica das canções que poderiam facilmente se tornar um ponto negativo, mas que são transformadas em uma das coisas mais interessantes e geniais do álbum: toda faixa apresenta uma espécie de introdução apenas instrumental longa para depois começar a sua parte com composição. Por exemplo, Alone é apenas instrumental durante mais de três minutos e meio para só depois começar a sua letra. Essa estratégia é desenvolvida de uma forma tão impressionante e única que constrói toda uma atmosfera que adiciona uma profundida abissal para cada faixa, independentemente qual seja o clima da canção. Em questão de definição sonora, Songs of a Lost World segue a tradicional sonoridade da banda ao ser uma gothic rock/rock alternativo que não tem nada exatamente de novo, mas é entregue com perfeição absurda e atemporal pela produção comanda pelo vocalista lendário Robert Smith ao lado do produtor Paul Corkett. Todavia, o segundo motivo de fato que faz o álbum ser um álbum que apenas a banda poderia entregar é a presença de Smith nos vocais e, principalmente, como único compositor.

Apesar dessa impressão nítida de força renovada, o teor das composições aqui poderia ter sido entregue apenas por uma pessoa com a bagagem de vida e artística do icônico vocalista. Songs of a Lost World é sobre envelhecer, sobre os ciclos da vida, sobre inevitável fim, sobre o peso do passado e incerteza do futuro, sobre as terríveis e esclarecedoras descobertas que apenas o passar do tempo nos traz. E tocar nesses assuntos da maneira tão desconcertante honestas e visceralmente cruas só pode ser feito por alguém que realmente já viveu é capaz de fazer em toda o seu esplendor. Além disso, Smith tem uma lírica simples e bastante direta que encontra rápida assimilação com quem escuta, criando um laço verdadeiro e de uma emoção genuína. E tudo isso comuna em momentos de puro brilhantismo e emocionalmente acachapantes como é o caso da canção que fecha o trabalho em Endsong. A canção começo em verso relatando uma memoria da sua juventude em que assistiu ao lado do seu pai o pouso do homem na lua para logo depois “enfiar a faca emocional” no refrão que nos relembra sobre a mortalidade de quem a gente ama ao dizer “It's all gone, it's all gone/Nothing left of all I loved”. Longe de ser uma estratégia para fazer emocionar apenas por fazer, mas, sim, é um relato de quem conhece essa realidade tão natural e tão difícil para a gente aceitar e compreender. Não bastando entregar composições nesse nível, Smith também nos agracia com performances impressionantes para um homem aos seus sessenta e cinco anos que deixa qualquer “jovenzinho” comendo poeira, sendo um dos pontos altos a entrega visceral e devastadora na gigantesca Warsong. Outros grandíssimos momentos do álbum ficam por conta tocante balada sobre o fim do amor em A Fragile Thing, a eletrizante e visceral Drone:Nodrone e, por fim, a gloriosa All I Ever Am. Songs of a Lost World é sem nenhuma duvida um dos álbuns mais gratificantes de escutar e resenhar nos últimos tempos, pois The Cure entrega uma obra realmente genial e transcendente que apenas seria capaz de ser realizada por talentos tão lendários."

2. COWBOY CARTER
Beyoncé


"Cowboy Carter não é exatamente o melhor álbum da carreira da cantora, pois o posto ainda é na minha opinião para Lemonade. E tenho que admitir que nem necessariamente será o preferido de maneira pessoal. Todavia, esses dois postos ficam bem perto de alcançar devido a descomunal força que é posto para a criação do trabalho. E isso é feito em basicamente todas as frontes possíveis, começando pelo tamanho e duração do álbum. Com vinte e sete faixas e mais de uma hora e quinze minutos, o trabalho é colossal que vai se estendendo e desenrolando ao bem querer da produção, mas que, felizmente, nunca se torna arrastado. Várias vezes já apontei que o tamanho de um álbum era o seu principal defeito e isso poderia ser também o caso Cowboy Carter. O que diferencia aqui é o fato que existe uma razão para ser tão longo e, principalmente, a maneira como é construído essa verdadeira jornada. E essa é uma das maiores qualidades do álbum.

Quando fiz a resenha de RENAISSANCE apontei que para realmente entender o álbum era necessário ter um contexto sobre a carreira da Beyoncé, pois “desde que fez a sua transição artística, a cantora vem explorando gêneros, sons, estilos e estéticas que fizerem a história vindo diretamente de artistas negros. Apesar de sempre presente na discografia da cantora, essa vontade e concretização vem de forma mais nítida desde o lançamento do 4”. Todavia, assim com o primeiro ato dessa era não basta entender sobre o que a cantora fez ao longo dos anos, mas o que a influenciou desde o começo. Não irei aprofundar sobre o motivo do country ser de raízes dentro da população negra assim como outros gêneros, mas é preciso entender que Beyoncé foi desde pequena mergulhada nessa sonoridade assim como, também, a pop e R&B. E, mesmo podendo ser estranho, ouvir a cantora ir por esse lado não deveria ser uma grande surpresa, sendo que no álbum anterior já tinha sido explicado melhor: o resgate.

Assim como RENAISSANCE, Cowboy Carter “é uma celebração da música negra”, mas dessa vez, porém, também é uma forma de como a cantora resgata o devido holofote para country e os seus renegados artistas negros. Para isso, Beyoncé não decidiu apenas fazer um álbum country, mas, sim, um álbum que abrangesse vários todos os tipos de country. E devido a isso é que temos um álbum tão grande, pois o mesmo é literalmente uma viagem ao ir do country tradicional ao country atual, passando por americana ao folk, contemplando subgêneros como country-pop e country-rock até chegar ao country contemporâneo. Todavia, a cantora não quer apenas resgatar a importância negra para o gênero, mas quer também demandar que gênero e estilos musicais não pertencem apenas a uma comunidade de pessoas/artistas. Isso é feito no momento em que Beyoncé começa a experimentar pesadamente com a sonoridade do álbum, criando a sua própria versão do gênero. E, queridos leitores, essa versão é o que faz Cowboy Carter ser essa odisseia inesquecível. E qual é essa versão?

Em Spaghettii, faixa que é usada quase como um divisor de águas no álbum devido a sua posição e temática, existe uma voz off em que ouvimos o seguinte: “Gêneros são um conceito engraçado, não são? (...) Em teoria, eles têm uma definição simples e fácil de entender/ Mas na prática, bem, alguns podem se sentir confinados”. A dona da voz é cantora Linda Martell que é literalmente a primeira mulher negra de sucesso do country com o lançamento do álbum Color Me Country em 1970. Apesar de não ter continuado no gênero, migrando para o gospel, a cantora teve a sua importância reconhecida nos últimos anos depois de um período esquecida. Com essa reverencia importantíssima, Beyoncé mostra que está atenta ao máximo ao passado, mas olhando para o que a mesma entende sobre a versatilidade da música já que a faixa é uma fusão de rap, country e com samples de funk brasileiro Aquecimento Das Danadas do DJ O Mandrake. Acredito que a faixa meio que ajuda a entender o que a cantora quer fazer nessa sua busca ao reverenciar quem fez história e, ao mesmo tempo, deixar extremamente claro que a música é algo vivo em constante evolução, mesmo que exista quem defenda o contrário. Para isso, Beyoncé conta com a colaboração de alguns nomes que meio que pavimentaram a estrada do country. E o maior deles é a rainha do country, a lendária Dolly Parton.

O maior nome feminino do gênero com uma carreira de quase sessenta anos, Dolly é um dos pilares do country moderno, mas também foi uma das primeiras artistas do gênero a cruzar a ponte para outros gêneros como o pop ao deixar uma marca importante em todo o mainstream. A decisão de regravar uma das canções assinaturas da cantora não é exatamente uma surpresa, mas o fato de a reconstruir é algo que realmente não esperava até entender o cerne do álbum. Por isso, essa versão de Jolene é um dos momentos de genialidade pura de Cowboy Carter . Sonoramente, a canção se mantem quase a mesma, sendo adicionada apenas nuances instrumentais que a quase se aproxima de uma country rock e uma extensão levemente gospel ao seu final. Todavia, a letra foi reescrita totalmente para refletir a persona da Beyoncé. A original era sobre o pedido desesperado de Dolly para a tal Jolene não tirasse o seu homem, enquanto Beyoncé é um aviso para que a “furo olha” não chegar perto do seu homem para o “pau não comer”. E a nova composição é tão impressionante tecnicamente que está perto do nível da força original de Dolly. E a intro com a gravação da própria Dolly quando a Beyoncé lançou Sorry é apenas cereja em cima do bolo. Mesmo que aparecendo apenas em intro como um apresentar de radio anunciado as canções, a presença da lenda Willie Nelson apenas valida toda a visão da cantora. Outro momento que demonstra toda a capacidade e intenção do trabalho é na genial Ya Ya.

Provavelmente, uma das canções mais significativas em questão de sonoridade do álbum, a canção celebra todos os artistas que quebraram expectativas e barreiras ao fundir estilos como, por exemplo, Ray Charles, Ella Fitzgerald, Aretha Franklin, Little Richard, The Jackson 5 e Tina Turner ao mencionar o Chitlin Circui que era conjuntos de lugares que davam espaço para artistas negros cantarem durante o período de segregação racial. Na verdade, a canção também reflete essa ideia com a sua sonoridade elétrica, explosiva, dançante e com essa vibe showstopper ao misturar rockabilly, soul, country e R&B. E o uso dos samples de Good Vibrations do The Beach Boys e, principalmente, These Boots Are Made for Walkin’ da Nancy Sinatra ajuda a enriquecer imensamente o resultado final. Liricamente, Ya Ya é a faixa de maior impacto politico e critico do álbum em que a cantora reflete sobre manter a esperança mesmo vivendo em tempos sombrios que tentam, por exemplo, apagar a história negra das escolhas americanas. E apesar de alcançar o ápice com suas experimentações, Cowboy Carter também acerta plenamente quando segue um caminho mais seguro.

Texas Hold 'Em poderia facilmente ser esse momento já que “ao ser mais pop e animada, a canção é divertida, dançante e tem aquela vibe que dá vontade de dançar quadrilha vestida de marca importadas e de salto alto”, mas Beyoncé também segue outras direções. Bodyguard é uma romântica e sossegada country pop/popr rock que emoldura o que faz nomes como Kacey Musgraves e Maren Morris. A dramática Daughter é uma impressionante americana/country/folk que tem a inesperada e brilhante introdução de opera nos versos de Caro Mio Ben que são entoados de maneira deslumbrante. 16 Carriages tem uma “batida é mais classuda, emocional, poderosa e pende claramente para uma influência soul/gospel. Existe uma força sentimental por trás da construção da canção que é perfeita para carregar a emocionante composição”. A belíssima química entre a cantora e a Miley Cyrus na tocante balada II Most Wanted e a leve sensualidade romântica em Levii's Jeans com a ótima presença do Post Malone mostram a faceta de grandes encontros que o country apresenta, sabendo perfeitamente mirar no lado comercial sem perder qualidade. Outros momentos importantes do álbum ficam por conta da dançante Riiverdance e sua impressionante instrumentalização que reconstrói uma melodia country ao adicionar toques de dance, trap e R&B, a construção complexa da melodia de II Hands II Heaven, Tyrant e a sua criação de uma batida country hip hop e, por fim, a descomunal e revigorante Sweet / Honey / Buckiin. Cowboy Carter poderia facilmente ser a consagração de qualquer artista, mas nas mãos da Beyoncé se torna um importante momento de reset cultural como poucas vezes tivemos na indústria da música. E respondendo a própria cantora na colossal canção que abre o álbum em Ameriican Requiem em que mesma diz “It's a lotta chatter in here/ But let me make myself clear (Oh)/ Can you hear me? (Huh)”: sim, Beyoncé, estamos ouvindo claramente e até aqueles que não quiseram escutar serão obrigados."

1. Fearless Movement
Kamasi Washington


"É preciso dizer que o álbum não é um trabalho para todos os públicos, mas tenho certeza que se você tiver a ideia de gostar de música boa seja qual for o estilo ou gênero irá com certeza encontrar várias coisas para adorar o álbum. E o maior ponto para adoração é o impressionante e genial trabalho de instrumentalização. Parece obvio que um artista que é um instrumentalista teria como ponto alto os arranjos no seu álbum, mas Washington vai muito além para entregar um verdadeiro deleite transcendental para os ouvidos ao construir uma rede complexa, refinadíssima, surpreendente, rica, intricada e magistral de construções instrumentais. Em quase uma hora e meia de álbum, o artista é apoiado por uma coleção genial de colaboradores que contribuem de maneira incontestado para a elaboração de cada faixa em que tudo soa como uma grande onda de som e, ao mesmo tempo, a gente consegue perceber a importância de cada instrumento para a definição e lapidação da sonoridade impressionante de Fearless Movement. Nas mãos de uma pessoa menos capacidade para comandar, o álbum teria sido esmagado pela própria imensidão da sua sonoridade em que seria perdido facilmente o foco e iria terminar como uma grande decepção. E isso é algo que passa muito, mais muito longe do que é ouvido no álbum em todos os momentos.

De maneira bem geral, Fearless Movement é um trabalho de jazz que percorre caminhos experimentais para entrega a sua épica e imponente sonoridade. Todavia, o fato é que estamos diante de algo bem mais complexo, pois Washington injeta uma gama imensa de outros gêneros para criar a sonoridade do álbum indo do rap, psicodelia e hip hop, passando soul, funk e R&B e chegando até a subgêneros do jazz como jazz fusion e spiritual jazz. Apesar de tamanha ambição, a produção comandada pelo artista com auxilio em algumas faixas de nomes como André 3000, J the Chicago Kid e Miles Mosley, consegue perfeitamente administrar o equilíbrio entre o proposto e o entregue ao meticulosamente estabelecer um fio condutor desde os primeiros segundos até o ultimo momento que faz quem escuta entender o fio da meada dessa monstruosidade sonora. Somos arrebatados pela grandiosidade do álbum, mas nunca perdermos o foco sobre o que estamos ouvindo. E boa parte disso vem a genialidade técnica por trás dos arranjos, mas, também, da maneira sempre sóbria que Fearless Movement é conduzido. Sóbria, mas nunca densa já que o trabalho é claramente uma celebração.

Outro ponto importantíssimo para o sucesso do álbum é o fato que o trabalho é vibrante, elétrico e explosivo de uma maneira solar que vai transitando entre o dançante, inspirador e radiante. Acredito que seu o trabalho fosse mais melancólico e denso no sentido emocional é provável que poderia terminar sendo pesado demais para o seu tamanho de duração e tamanho artístico. Isso não seria exatamente um problema, pois acho que o imenso talento de Kamasi seria capaz de encontrar saídas para aliviar essa sensação. Só que com o resultado que temos fica fácil notar que essa decisão de celebração para a sua atmosfera é o ponto que faz o álbum dá aquele passo para a genialidade pura. E um outro detalhe que dá ainda mais força para Fearless Movement são as suas inspiradas e espetaculares participações especiais.

Mesmo sendo um álbum focado na parte instrumental e na atmosfera sonora, o álbum conta com algumas participações sensacionais de uma gama de artistas que apenas aumentam o poder das faixas que participam. Um exemplo perfeito disso e, também, de tudo que vem falando é a genial Asha the First. Uma inesquecível e reverberante faixa que destaca perfeitamente o poder instrumental criado para o álbum, a canção ainda conta com os vocais de Thundercat e Ras Austin e um verso extraordinário e épico do rapper Taj Austin que consegue a proeza de elevar o que já era perfeito para outro patamar. Na contra partida, Kamasi Washington mostra o seu poder de maneira solo ao comandar ao magistral Prologue ao ser “uma explosão sonora que faz a gente ser catapultado para uma outra dimensão devido a magistral construção instrumental e transcendental estrutura atmosférica. Sem ter medo de começa a canção já a 100km por hora, Washington já impacta quem ouve com o seu magistral sax em torrente continua e desorientante que vai conduzindo todo o resto do espetacular arranjo. E quando a gente acha que a canção não tem mais para onde ir, Prologue vai se desenrolando no seu terço final como um quase maremoto sonoro em uma explosão de tirar o folego e misturar todas as nossas sensações de forma inesquecível”. Na bela e romântica Computer Love, a impressionante ambientação sonora ajuda a refletir sobre o amor na modernidade com uma performance devastadora da cantora Patrice Quinn. The Garden Path “é o triunfo de uma instrumentalização genial. Explosiva, mas sem perder a ternura. Sufocante, mas nunca sendo exageradamente frenética. Belíssima, mas apresentando uma fúria selvagem. Contemplativa e, ao mesmo tempo, sabendo exatamente o que é do começo ao fim. A canção é essa dualidade de informações, mas que nunca se perder devido ao pulso firme da produção. E o solo de sax de Kamasi é algo realmente triunfal e poderoso como a fúria de vendável”. A beleza da construção de Interstellar Peace (The Last Stance) poderia facilmente fazer parte de uma premiada e cultuada trilha sonora de um filme clássico de ficção cientifica. E, por fim, o álbum começa de maneira devastadora com a gloria espiritual Lesanu. Facilmente um dos álbuns a estar entre os melhores de 2024, Fearless Movement é um dos marcos artísticos que devem ser celebrados em toda a sua magnitude do talento de um gênio como é Kamasi Washington."

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